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domingo, 3 de março de 2019

A sorte de ter tudo, ou a alegria de ser feliz



por Lo-Chi



Com a hemorragia de quadros logo após a independência de Moçambique, o governo teve que encontrar saídas, com medidas a curto e médio prazo, no sentido de que encontrasse formas de que a produção e a economia não parassem nem colapsassem. De entre as medidas a médio prazo, no âmbito de cooperação com os chamados países do leste, e não só, foram enviados estudantes e potenciais trabalhadores para a então Alemanha do leste. Muitos deles estiveram nas escolas técnicas e institutos, outros foram para as fábricas, integrados nas linhas de montagem de máquinas e equipamentos agrícolas, etc. etc. E estes alunos e operários, que estiveram um tempo considerável, vivendo por essas bandas, acabaram se apaixonando e casando com as mulheres que se lhes atravessaram nas vidas e os corações.

Importa referir que os estudantes que estiveram em universidades ou institutos superiores, chegados a Moçambique, em virtude da gritante falta de quadros, eram muitas vezes levados para projectos em curso, ou empresas já formadas para os quadros de direcção. Os operários, grande parte que estiveram em fábricas, nas linhas de montagens, não encontravam correspondência com as unidades fabris então em funcionamento por cá, e acabavam tendo imensas dificuldades de integração.

Houve meia dúzia de casais vindos da Alemanha, conforme acima referido, que foram parar à cidade da Beira, todos devidamente colocados, posto que vinham das instituições de ensino, cinco deles colocados nos lugares de gestão de diversas empresas, as quais não interessa citar os nomes, e um deles, desafortunado, chegou, depois de um período de trabalho, nas linhas de montagem e obviamente, com dificuldades de integração. Em consequência, ele e a esposa, alemã, foram viver para a Munhava, conforme suas posses, uma das áreas mais críticas da cidade da Beira, onde enfrentaram toda uma série de problemas, circunscritos aos dos bairros limítrofes: saneamento, água potável, acesso precário, falta de energia, as doenças endémicas, etc., etc..

As cinco alemãs, depois de um período considerável de estadia, convivendo com a facilidade que o lugar dos esposos lhes conferia, apercebem-se das dificuldades e condições de vida que a outra tinha, muito por força do contexto difícil em que o seu esposo se encontrava. Compatriotas, sentiram a dor de ver uma das suas em situação deveras deplorável, em consequência reuniram-se para debaterem o assunto e encontrarem formas de resolver o problema. Discutido o assunto, concluiu-se que deveriam trazer a compatriota para a casa de uma delas, e desta consultado o marido, este anuiu, em solidariedade com a dor sentida pela sua esposa e amigas, por verem uma das suas vivendo, o que aos olhos de todos estava claro, era um calvário, tomando em linha de conta as suas origens. Reunido e anuído, lá deram a conhecer a dita cuja, que em face de uma solidariedade espontânea das conterrâneas, apenas agradeceu e fez as malas para viver com a escolhida. E de facto, pode constatar que não apenas as condições eram excepcionais, em relação ao seu presente, bem como a alimentação em tudo diferente, e muito próximo ao que se habituara lá pelas alemanhas. Se nos primeiros dias pode desfrutar dessas condições, após uma semana, sentia um tremendo hiato e depressão, que começou a pôr em dúvida, se teria dado o melhor passo. Ao meio da segunda semana, não tinha dúvidas, mas plena certeza, que o seu lugar não era por aquelas bandas, o que lhe levou a abrir o coração, junto da sua conterrânea benfeitora e afiançar-lhe, perante a estupefacção daquela, que queria voltar para casa do seu marido. E foi clara, declarando-se grata, pelo espontâneo acolhimento do casal, bem como ao tratamento de irmã que fora dispensada, mas que nada daquilo substituía ou afogava a saudade do marido, principalmente nas noites em que se recordava do fausto jantar e ceia que lhe era prodigamente facultada pelos avantajados meios do baixo-ventre do seu querido esposo. Em suma, trocava a sorte de ter tudo, pela alegria de ser feliz.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Os adversos favoráveis à personalidade equilibrada


Por: Lo-Chi



Houve dois momentos negativos, se assim se pode chamar, na minha vida, que tiveram um resultado positivo, no conjunto da minha personalidade ou mesmo do meu carácter. O primeiro foi o facto de, as primeiras namoradas que tive e as quais a minha mãe tomou conhecimento, ela ter afirmado taxativa e repetidamente: eu não sei como essas miúdas se apaixonam por um gajo feio como tu! Levei a sério com tal magnitude, que de todas as vezes que eu entrava num flerte bem sucedido, sempre pensei que fosse, ou por uma sorte de todo tamanho, ou pelo mau gosto da miúda. Outro momento, este devido, quiçá a sorte, ou o destino, ou a mim próprio, foi quando tentando contrariar o meu pai, que queria à viva força que eu me tornasse músico, onde aprendi piano durante quatro anos, desertei logo que tive a oportunidade, pelo mero gosto de contrariar **, com tal determinação que hoje não sei, onde se situa a tecla do dó e quantas claves existem, menos ainda quantos compassos fazem o universo musical. As colcheias troco com colchões as fusas confundo com fusos, não sei se com fusos horários ou se parafusos. Olhar para aqueles hieroglíficos da pauta musical, está igualzinho o olhar para um relatório em chinês japonês ou língua árabe.

Note-se que jamais me senti, rejeitando-me, olhava para o espelho e a imagem agradava-me, satisfeito comigo mesmo, porém na dúvida de que provavelmente não fosse do padrão que a maioria feminina estivesse inclinada a gostar, induzido pela repetida afirmação da minha mãe, que diferentemente das mães corujas, aplicava uma dose cavalar de salutar realismo ao seu filho. Encerrava em mim, por natureza inata, um autêntico narcisista. E acho que a minha mãe intuitivamente apercebeu-se. Como médica preventiva, impôs-me uns alertas, que me punha com um pé atrás. Satisfazia-me plenamente, todavia sem saber se satisfazia a clientela. Talvez isso fizesse com que, até a minha idade dos dezoito anos, não estivesse muito inclinado a expor-me e pouco atreito aos desafios. Desse jeito a minha inata propensão para auto satisfação e convencimento, foi refreada.

Quando num contexto extremamente adverso e preconceituoso, começo a ter sucessos atrás de sucesso, contra personalidades de créditos firmados, começo a ficar claro que o produto era de muito boa qualidade e que recomendava-se. Mas aquele polícia, sempre alerta, que a minha mãe fez questão de implantar na minha mente, sempre me chamou, para refrear os ânimos, e desse jeito, assim se fez este humilde e equânime cidadão.

De vez em quando, olhando para a nossa realidade, vejo indivíduos, porque a natureza lhes conferiu alguma vantagem estética, fazendo e desfazendo; como alguns com habilidades criativas no capítulo de som harmonioso, enfatuados (isso citando exemplificativamente essas duas áreas, mas extensivas a outras qualidades e ou habilidades); penso com os meus botões, quanto eu não seria insuportável, se a minha mãe não tivesse desempenhado um papel formidável, e se eu tivesse aliado, a minha incontestável vantagem estética fisiológica, com a capacidade de criação e/ou interpretação musical que o meu querido pai pretendia conferir-me. Sabemos que os músicos pela circunstância de excepcionais, normalmente são pessoas cheias de si. Acredito que seria um ser insuportável. Sou o que sou, graças a minha mãe a preservar-me da soberba, com uma dose um pouco exagerada, que se não fosse a minha dose exagerada de amor-próprio, quase me paralisava, e por outro as mulheres da minha vida a aquilatarem-me devidamente, fazendo o justo contra-peso. Por isso a minha eterna gratidão as mulheres. Hoje todo o sucesso que alcanço, fruo com a humildade mínima aconselhável. Bem haja, a minha mãe!!!

** Hoje, algumas vezes, até sinto aquele gostinho amargo do arrependimento, aquela invejazinha, vendo alguns exímios artistas; talvez fosse um deles. Outras vezes, arrependo-me, no benefício da dúvida, de não ter dado ao meu pai o gosto de ter um filho que o seguisse na vocação musical.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O meu lamento tardio e cúmplice


Por: Lo-Chi



O que fiz do meu país?! Os direitos humanos prevalecem às obrigações humanas. O país que eu fiz, as crianças têm menos prerrogativa de beber um copo de leite comparativamente ao bêbado, cujo álcool, com incentivos fiscais, se dissemina a preço de banana, enquanto que a criança se priva no preço do seu subalimento.

O meu papel de educador, cómoda e indevidamente, outorguei, furtando-me do meu dever fundamental e básico, passando uma procuração de plenos poderes, às instituições cujo papel é complementar, mas mesmo esse, de uma incompetência assustadora. E na vez de mimar, virei permisso, e os valores e os limites, se confundiram com escravidão; e aboli-os. Aboli-os tão levianamente, que na vez de filhos criei monstros. O que fui fazer? A tal instituição a quem outorguei a educação, deseduca. Subcontratou a penitenciária que virou faculdade. Faculdade da malandragem, essa mais produtiva, na quantidade e qualidade. Em vã expectativa, surgiram as privadas, que não só transmutaram tunchagamoyos, como nível básico das penitenciárias. Estou pesaroso do meu país, mas fui eu que o fiz. A cada dia vejo alunos aos magotes, regressando das aulas, na vez de exibirem garbosamente civismo, portam-se à altura dos mais grosseiros arruaceiros, onde em palavrões, vão tendo conversas, que fazem o gáudio dessa manada, pastando e regurgitando mal-criação, tendo de sobremesa as meninas que indiferentes fazem da moléstia galanteio. Os professores esses então, dão-me o desabono de recordar, que algum dia exerci essa profissão.

O que eu fiz do meu país, fi-lo na passividade cómoda e cobarde, onde profissionais competentes, para terem vida decente, tem que se prostituir com a política. Política profícua de  parlamentares aldrabões submissos coniventes, ministros cadongueiros em boladas das mais descaradas. Vendem madeira a preço de lenha, assinam contratos com eles próprios. Projectam actividades com custos dos olhos do povo, saem bestialmente ricos, pedindo investimento, investem  lá fora. O país que eu fiz, desacredita a própria Constituição, onde a agricultura é o motor, mas sem combustível, nem acessórios, constrói pontes desnecessárias, quando o pouco que se produz, engasga-se no campo.

O que fiz do meu país. Um soba supostamente respeitado está envolto numa gravíssima suspeição de falta de pontaria na aplicação dos bens públicos. Altos dignatários do país, na vez de promoverem os empresários feitos, no sucesso do seu honesto esforço, cantam hossanas aos empresários de esquema e do submundo, com histórias por demais contadas e reconhecidas. O país que eu fiz, o ladrão tem mais direitos que o honesto trabalhador. O ministro virou arguido, o juiz é julgado, tribunais supremos não dominam a legislação, o ladrão persegue o polícia, o polícia insegura, a procuradoria umas vezes se esconde outras vezes procura-se, a assembleia deslegisla, o estado deixou de estar, ausente se fez. O país  que eu fiz é um estado de direito, um direito torto, empenado e opressor. Eu sonhei com um Estado de justiça e de amor, um Estado trabalhador e não parasita.

No país que fiz, permiti, que os senhores da guerra, contaminassem a sociedade, a tal ponto, que esta perdeu os valores queridos da nossa tradição moçambicana: solidariedade, respeito, humanismo, trabalho, valorização da mãe natureza. Os jovens adversários políticos, odeiam-se, de adversários alquimizaram-se inimigos, como os seus progenitores. Os senhores subverteram com a sua matriz financeira a tal jeito, que mesmo nos pontos supostamente de reserva moral, se esgotou e tudo se mercantilizou e virou um dumba nengue de tráfego de influência, de crime: infantil, humano. O país que eu fiz, as religiões combatem a tradição e cultura, a nossa essência; trazem o negócio do dízimo, sob o olhar impotente da ignorância de todos nós e dos senhores, adoram o deus que eles criaram, e não creem no Deus que criou o homem.

O país que eu fiz, quer ligar a África, quando ele próprio não se ligou. A estrada nacional numero 1, nunca foi, está sempre adiada. A agricultura que produz no mínimo, o máximo fica no campo, apropriada pelas estradas e pontecas, firmemente intransitáveis. O meu país não se abriu a si mesmo, e quer-se abrir ao mundo. O meu país ao avesso, a estrada para a praia, teve direito a uma mega ponte, inflacionada, e asfalto, para que não se ferissem os 4x4 da gangue. Pior que tudo, o meu país nunca se aceitou, rejeitando uma parte de si, aceita os outros e seus desvalores. Esse é o meu país, o país que eu fiz!


NA: Esse lamento não é meu, é nosso. Eu e tu, que te sentes defraudado. Por outro lado grato, as honrosas excepções, na esperança de que amanhã façam a diferença.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

É político e basta


por Lo-Chi


O Muaqueliua, um sujeito de estatura média a tender para o baixinho, tez adornada de jambalau, introspectivo, pouco metido a socialização e a brincadeiras do nosso tempo juvenil, arisco, parco em palavras. Foi meu colega de turma, na Escola Técnica, no curso comercial. Comigo convivia, quase no limite da tolerância, quando, fortuitamente, eu metia-me com ele, e era aí, que no seu sotaque de lomwé da alta Zambézia, me dizia quase a repreender, Não sei como aduras esses waides?, com um ódio mesclado com fel. Mas no fundo, era um sujeito bom, fora esse radicalismo, talvez determinado pela sua origem, marcada de sofrimento e carestia. Inteligente e aplicado nos seus deveres, e não poucas vezes voluntário para esclarecer dúvidas à turma, principalmente de Matemática e Calculo Económico, duas disciplinas, que eram o seu forte.

Depois de um longuíssimo período de separação, no qual jamais tivera notícias, eis que afortunadamente, num acaso, aparece-me o Muaqueliua, e como é comum nesses acasos, foi uma festa e tantos. Mas logo à seguir a efusividade, antes mesmo de recordarmos os factos antigos e de perguntarmos pelos colegas comuns, ele atira-me com a pergunta de chofre, És político?, com a maior das naturalidades, disse-lhe, que o que mais gostava, era estar distante desse departamento, porque não nascera talhado para essas coisas. Ele mais não disse sobre a questão; nem bem nem mal. Daí saiu o rolo de recordações, desfiadas com aquela característica comum, de rever o passado, com dados verdadeiros, outros ficcionados, coisas que o tempo acaba criando e modelando na memória. Depois disso, fomos falando do presente, onde acabou informando que havia chegado para ficar, transferido, e com intenção de por aqui se radicar. Trocamos números de celulares, endereço das casas, com uma data marcada, para a primeira refeição de confraternização. Noto no final do encontro, que ele se havia libertado do sotaque característico do lomwé.

Desse dia em diante, passamos a encontrar-nos com muita frequência, adaptada a nova circunstância de indivíduos com família. Porém, uma singularidade marcou os nossos convívios, posto que eu tinha outros amigos, que de quando em vez, nos encontravam, e eu fazia por apresentá-los. Quando adivinhava isso, a primeira coisa que me perguntava, era, Esse teu amigo é político?,  e consoante a resposta, ele tinha um comportamento, diferente. Se a resposta era negativa, ele era um homem afável, conversador, se positiva ou se na dúvida, ele tornava-se esquivo, arredio, fazia por não dar o nome, ou se fosse obrigado, mentia ostensivamente, até pensei, que sequelas daquele radicalismo dos tempos de escola que persistia nele. Acredito que, para evitar equívocos, acabou abrindo o jogo e disse-me de caras, Meu, dos teus brothers, os que forem políticos, por favor, não me apresentes, ou avisa-me com antecedência, que retiro-me da área, até que o terreno fique limpo. A partir desse momento, percebi claramente, que ele tinha uma profunda alergia aos políticos, e encontrei a lógica daquela sua pergunta, à queima-roupa, no primeiro dia do nosso reencontro. Em face disso, começamos uma discussão em torno do exagero, de um posicionamento completamente radicalizado, onde eu tentava demonstrá-lo, que os políticos maus eram, porque eram más pessoas, bem como havia indivíduos não metidos na politica e/ou em partidos, que eram pessoas péssimas. Ele, peremptório, rematou-me, como contra-argumentação, dizendo-me, Meu não estou a falar de excepções, mas de regras, ainda tentei contrapor, E como é que ficam as expções injustiçadas, achas que todos têm que pagar por alguns?, e ele veemente, Excepções são excepções como a própria palavra define, e eu neste caso de políticos, sigo escrupulosamente a regra, respirou um pouco olhou-me bem nos olhos e continuou, é tão fácil um miúdo de boas famílias, bem educado, estragar-se, metendo-se na política, quão difícil é encontrares um político honesto, coçou a nuca e continuou, o politico é mau, é aldrabão, é pernicioso, é contagioso, falava com um quê de raiva e ódio. Aproveitei a deixa, para recordar a máxima dos anos 75, no nosso tempo de escola e rematei-lhe, Todo mundo é político, porque mesmo quando dizes que és apolítico, estás a ser político. Ele muito rápida e causticamente, com um azedume de arrepiar, Mano isso é papo de político, que sabe que está na lama, e como não gosta de estar sozinho, tenta arrastar todo mundo, com essa filosofia de meia tigela. A discussão ficou por aí, continuamos, em outros assuntos, porém eu, internamente, estabelecendo um paralelismo, do radicalismo dele em relação aos colegas de raça branca, daquele então, e o seu ódio visceral aos políticos. Passaram-se alguns anos, e fora do que ele havia previsto, foi de novo transferido para uma outra cidade, e continuamos com o nosso contacto, trocando mensagens e alguns telefonemas, em datas ou assuntos, que assim requeriam. Estava tudo soterrado no tempo, quando se dá o caso da detenção, na África do Sul, do nosso ex-ministro das finanças e a suspeição envolta de grandes figuras no mesmo caso. É então, que fora das minhas contas, recebo, o telefona do meu amigo, sem cumprimentos sem nada, Alô, digo eu, Estás ver os políticos, qual deles é que tinhas na excepção? Esses não valem o dejecto que defecam, regista!, disse seco; e eu apanhado de supetão, autómato, retorqui, Exaltemos a pátria**, falei sem saber o que significava: se lhe estava pedir compreensão, se a mandá-lo à m.r.da, ou aos políticos!


** a frase da moda nos dias recentes em Moçambique, após as cerimonias de 3 de Fevereiro, dia dos heróis. Expressão que quer dizer tudo e nada, que serve essencialmente, quando a pergunta te toca, e tentas esquivar.

sábado, 26 de janeiro de 2019

O embaraço em que nos deixa os absurdos do nosso organismo


Por: Lo-Chi



Há vezes em que, um ou outro órgão do nosso corpo entende que deve, por instantes, ficar autónomo do cérebro, órgão por excelência de comando. Fazendo com que gestos involuntários, nos deixem completamente encabulados, em face de flagrantes inoportunos. Uma comichãozita no nariz e lá metemos o dedo indicador, na maior das canduras, numa espécie de estímulo reacção, e de repente, notas que alguém está olhando para ti, assistindo a tua limpeza de salão. Há uma espécie de rubor que atravessa o corpo. Pior ainda se em face de um vizinho impertinente, que maldosamente te questiona: “há baile hoje?”. Outras, tu concentrado, num trabalho que te consome o tempo, sem que deias por ele, e num nada, catrapus, um pum sonoro e desgovernado. Não estás sozinho, no escritório ou na sala de aulas, e todos olhares se convergem em ti. Nem palavras para te desculpares, encontras. Essas e outras. Eu tive uma namorada lindíssima, mas que se sentia terrivelmente incomodada e desventurada, porque, dizia, nos momentos mais imprevisíveis e embaraçantes, os seus intestinos emitiam uns arrulhos (semelhantes aos que acontecem quando estás com fome), e que os mais próximos a ela, ouviam com toda a certeza, não obstante o silêncio cúmplice, afiançava-me. E ela dizia-me isso, como se a maior desgraçada do mundo. Ainda que eu lhe dissesse, que não era motivo para se aborrecer, mas era uma situação que a indispunha sobremaneira.

Todos esses embaraços acabados de citar, que o nosso organismo algumas vezes nos traz, numa espécie de sacanagem, e os quais nos podem aborrecer e/ou criar algum mal-estar momentâneo, meus amigos, não se compara com um, que eu tive, há escassos dias. Imagine você, eu não, que vive na pele; eu na Beira, com intenção expressa de ficar uma semana, hospedo-me em casa de um amigo, o Furquia, casado, com a Adozinda, e com três filhos. Sou atribuído o quarto de hóspedes. No quarto dia, como nos outros, saí eu e o meu amigo, não almoçamos, pelo corre corre em que nos envolvemos, mas jantamos num restaurante. E em termos de beber foi o que normalmente consumimos, não mais que uma garrafa de vinho, e muita água, o que é normalíssimo em nós. Nesse dia para comer, optamos por frutos do mar. Resolvidos os nossos afazeres e encontros, regressamos à casa, com tempo ainda de ele assistir ao final do noticiário. Ainda conversamos um bocadinho e depois despedimo-nos com a promessa de pelas oito acordarmos, como forma de mais tardar as nove horas e trinta minutos, no máximo, estarmos na rua. Importa antes dizer, que sou um indivíduo, que não sonha, ou melhor dizendo, não se recorda dos sonhos que tem. Fui à cama, deitei-me, e por incrível que pareça, nessa noite, sonhei. Um sonho de uma nitidez impressionante, com a convicção de ser realidade. E as páginas tantas, sonhei a urinar. Já está a adivinhar. Pois é meu amigo, eu aos 40 anos a mijar-me (esse é o termo) na cama. Imagina-me, logo após tomar consciência do facto. Eu imaginei mil e uma coisas. Quis-me enterrado vivo ou morto. Quis que aquele vexame, apenas fosse uma ilusão ou sonho. Ensaiei o arrumar a cama para cobrir a vergonha. Mas o homem adulto exigiu de mim a honestidade, evitando essa atitude pusilânime. Chamei, num acto de desespero, o meu amigo, que veio e mostrei os sinais do crime. Primeiro sem entender, depois caindo na real, parte numa gargalhada, que à medida que soava, me fazia o homem mais desgraçado do mundo. Depois, vendo o meu ar constrangido, conteve o riso, olhou para mim e disse com ar de quem entendia a situação, e eu buscando arrimo nesse pronunciamento, Não te preocupes, que isso pode acontecer a qualquer criança. Sacana do gajo!, disse cá para mim, com uma vontade de o esganar. Fiz a minha mais longa higiene matinal, protelando o mais que pude, o momento de encontrar-me com a dona de casa, até que o meu amigo me chamou à realidade, posto que o nosso tempo já se esvaía.Sem remédio, fui ao encontro do vexame que era, encontrar-me com a esposa. Cabisbaixo, feito num oito, só pude titubear um pedido de desculpa, mal formulado, que a senhora de casa perguntou, Porquê?, tentando amenizar o ambiente, mas no fundo, só piorou, porque o brigou-me a especificar as razões.  Em dias não, tudo corre contra ti. Até as coisas boas. Imagina que diferentemente dos outros dias, todos os assuntos foram resolvidos a uma velocidade meteórica, de tal jeito, que ficamos com tempo mais do que suficiente, para almoçarmos em casa. E eu tentando convencer o Furquia, de que almoçássemos na rua, e ele peremptório decidiu, que o almoço seria em casa. Eu autómato, mais abúlico que resignado, nem contrapus. Chegados à casa, os cumprimentos da praxe, e quando vou ao quarto…as provas do crime, reavivando-me a desdita: a cama sem colchão, e quando vou à janela, o colchão secando ao sol. Foi bastante e suficiente, para que fora das previsões, logo depois do almoço eu anunciasse a minha partida, de regresso à minha cidade. Logo eu que sempre brinquei com os meus desaires. Todo mundo estupefacto, tentando demover-me da repentina decisão. Eu, estóico, mantive, sem apelo nem agravo. Meia hora depois, estava eu, na bomba, abastecendo o carro, já de regresso, ruminando esse tremendo absurdo, com a sensação, na altura, de ter ficado traumatizado. Problema maior não é o passado, é o futuro. Tenho imperativamente que voltar à Beira, dentro de um mês e meio. Vou ao hotel, ou vou hospedar-me a casa do Furquia, como sempre fiz? O princípio de fazer “cada dia um compartimento hermeticamente fechado”, não está a surtir efeito, já estou sofrendo o dilema do futuro. E esse contar-vos, meus senhores, é a forma que encontrei, para tentar expiar ou exorcismar o pecado. Mas por favor, não espalhem por aí! Conto com a vossa discrição.

PS:__
Um grande amigo quando soube da minha desdita, ligou-me. Eu convencido que teria apoio directo dele, mas contra a expectativa ele diz-me: “esse teu caso, se fosse comigo eu tirava de letra. Já o meu embaraço é um problema a serio, Ainda não sei quais os efeitos. Nota tu que a minha boca entendeu, e mal, que deveria abrir eu a dormir. Falei feito um sonâmbulo, pior que tudo é que não sei o que falei. “Pioríssimo”, isso para expressar a minha situação, é que a madame até agora que te falo, não fez nenhum comentário, não esboçou nenhuma reacção, o que significa que vem aí chumbo grosso, e não sei qual o tipo de arma e de que flanco irei ser atacado. Completamente a mercê”

domingo, 20 de janeiro de 2019

O futuro que me interessa

Por: Lo-Chi




Entrei na onda nacional, sentimento de satisfação, não por ver alguém preso, mas por sentir que o que todos nós passamos a saber (desde o relatório da Kroll, mas que alguns teimavam em fazer de conta que não) o roubo que sofremos de uns poucos, começava a ter uma espécie de justiça. Passado o momento de euforia, que fiz por encurtar o máximo possível, para não cair na tentação masoquista de sentir prazer com o sofrimento alheio, saí do presente e fui para o futuro com os olhos postos no passado, que fez este ignóbil presente armadilhado.

Não só me interessa que estes embustes não aconteçam jamais, seguindo um pouco a trilha do nosso hino, que jamais nenhum tirano nos volte a escravizar, mas para o efeito, microscopiar as causas, para evitar as consequências. Os efeitos, são, para os olhos que vêm, e agora, bem como para os catracegos, o aproveitamento descarado, dos servidores da rés pública. Em primeiríssimo lugar, temos que pensar o mais urgente possível, tocar na lei mãe (Constituição da República) como um imperativo nacional urgentíssimo, no que tange a possibilidade de separação efectiva dos poderes, dos constituintes do Estado; o executivo, o judicial e o legislativo. Sabido, e claro ficou, que aquele que tiver o primado, em relação a um outro, claríssimo que vai ter a tentação de nele se imiscuir. Ficou provado, e nota-se, que o judicial, timorato e valetudenário, sai deste imbróglio completamente chamuscado. E aprendamos, que temos que arranjar um meio de ninguém (órgão) nomear ninguém (órgão). Dar posse é uma coisa, nomear existem formas adoptadas em diversos países que são eficazes. Por outro lado, o próprio judicial, mesmo querendo fazer algo, (em situações por demais evidentes de enriquecimento ilícito, muitas vezes, o safardana passeando com jactância, para além das interferências) a legislação não ajuda. Por isso, preventivamente, a legislação deve criar facilidades de encurralar os que deiam sinais evidentes de enriquecimento sem causa justificada. O ónus da prova, deve ser irrefutavelmente do visado e não da autoridade que ficar a velar por tal, bem como as medidas preventivas, preconizadas e nunca efectivadas, se ponham em prática.

Nós (moçambicanos) temos que ser, antes de membros de um partido, cidadãos desta pátria, posto que a nação não é uma competição desportiva, onde tudo para o meu clube e outros que se danem. Que ninguém pense, que quando o seu partido faz porcarias, pode parecer que só prejudica a uns, mas como vimos, nós do partido nenhum (que somos a maioria) e os do A, B e C, ficamos todos afectados, pelos exageros tresloucados de uns poucos azougues de um único partido. Quando falo de nós cidadãos, também me quero referir à polícia e ao exército, que não se arregimentem em princípios partidários, como se ainda estivessem na idade da pedra, mas se norteiem pela legalidade.

Ps
Depois deste banho, no pretérito 29 de Dezembro, na alma sofrida, deste cidadão que se sente, não poucas vezes, enteado, nesta nossa casa chamada Moçambique, limpei-me com a toalha da razoabilidade reflexiva e após confecção desajeitada, coloquei, na minha parca mesa, esses snacks feitos de ideias que se pretendem construtivas, que quero partilhar convosco, ainda que não seja uma mesa lauta e suculenta. Estão servidos.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A academia da fraude ---- ou o olhar ao espelho que assusta

Por: Lo-Chi

Com este rombo que nos aconteceu, onde a nossa casa nacional (Moçambique), foi assaltada e deixaram-nos de tangas, fiquei meditando. Como foi possível, desfazerem as grades, ludibriarem todo o sistema de segurança, anularem os alarmes, roubarem, irem à vida, passearem a classe, sem darmos por nada, e até aplaudirmos e dispensarmos honrarias de salvadores da pátria. Talvez tenha começado, num percurso longo de aprendizado e aperfeiçoamento, sem termos dado por ela. E fiquei imaginando, o que poderia ter permitido essa agilidade toda.

Pensando, fui imaginando. Será que a pré teve o seu inicio no Banco de Solidariedade, onde sem legislação que normasse, o incauto e assustado trabalhador era obrigado a descontar o seu salário, já sofrido pelo 4/80, um valor que ia para uma conta, que ninguém sabia qual, nem quem a controlava. Agravo refreado, graças a resistência de uns poucos esclarecidos e incorrigivelmente teimosos, e porque havia o mínimo de honestidade e pudor, parou-se em face de uma obrigatoriedade ilegal, de um desconto voluntário à força.

Munidos de boa intenção, quiçá, a primária propriamente dita, devem a ter frequentado no BPD, quando inventa­­­­ram o C.C.A.D.R., onde em nome do desenvolvimento, se deu valores monetários em massa, para algumas boas famílias, as quais se eximiram de pagar e contribuíram para a falência técnica do banco. Completou-se o curso primário, suponho, com o Banco Comercial de Moçambique, complementando o curriculum de um curso elementar. Será? Perguntei-me.

É provavelmente nesta altura, que seleccionaram os melhores alunos da turma anterior, que se passaram para um curso básico ou secundário, onde começaram a trapacear, num latrocínio mais directo, ao bolso do pacato cidadão. É então que a escola frequentada foi dos madjermanes e dos madjonidjones. Preparando-se para passarem a uma fase de maior exigência, é que de permeio, a turma vai fazendo uns pequenos cursos de capacitação, aperfeiçoamento e reciclagem, aqui e acolá, nas urnas eleitorais; uns refreshments na agilidade do furto de votos, enchimento de urnas, falsificação de editais. Cursos dados por processos eleitorais. Coisas que pareciam de pequena monta, mas para aperfeiçoamento e adestramento, que lhes permitiu ter a equivalência do nível médio e o epíteto de máquina eleitoral.

Provavelmente, chegado a esse estágio de habilidades, era preciso mudar de nível. Um curso superior não lhes era desmerecido. Nesta fase, muitos alunos com qualificações recomendáveis e outros não, alunos de outras escolas e universidades candidataram-se, todos admitidos sob o critério da quantidade. Uns com certificado autêntico, outros com certificados falsos, aqueloutros sem certificado, mas com habilidades comprovadas, foram admitidos; todavia poucos seleccionados para a turma dos da linha da frente e de confiança. Estes, fazendo, em consequência lógica, o bacharelato, nas tramóias da estrutura de custo de combustíveis, onde uma taxa pirata, integrante, do seu destino, os cidadãos que devem, não sabem; e impávidos, os remetidos à ignorância, se remetem no silêncio cómodo da abcidadania.

Nesta fase, com a subida vertiginosa de conhecimentos adquiridos e as habilidades treinadas, na arte de levar sem pagar, ou de fazer de conta, sendo o peso da facturação, endossada aos bolsos do, não tanto incauto, porém amedrontado povo, feito cobaia, nas pesquisas e ensaios da universidade da trama. Progredindo assim, na escalada do saque, umas vezes encoberto em falsos concursos públicos, porque privados, na EDM, nos Aeroportos, na TDM, na Mcel, nas estradas pontes e escolas e outras infra-estruturas, umas vezes a título de salário de cargos inexistentes, como de PCAs adjuntos, bem como de Administradores não Executivos, outras vezes a título de patrocínio de viagens e quejandos, para uma determinada organização, sempre a mesma, despriorizando subsídios à agricultura e à cultura que merecem e contribuiriam para o nosso desenvolvimento comum. Concluída a licenciatura, imagino, impunha-se continuar, com o fito de fazer o mestrado. Contudo, para conferir maior fiabilidade, era preciso internacionalizar o processo de formação. É assim que no exterior, burlam o país nas compras dos Embraers e do Credilecs estrondosamente sobre facturados, para que não se confundisse com simples “boladas”. Chegados a esta fase de mestre, importava mostrar a ousadia de um universitário, mestre em destreza, convinha emparelhar com os doutores das ciências políticas, cujos conhecimentos se manifestam nos ecrãs da televisão, forma privilegiada de trazer à sociedade, as suas habilidades. Começa o saque, à luz do dia, de terras de quase toda costa da Zambézia em áreas de caça de material imponderavelmente leve, o invadir de mares para a pesca de espécies terráqueas de Cabo Delegado, o despudor do saque hélio-transportado no INSS, a tentativa de ficar com terrenos no grande Maputo, em áreas como actual cadeia central, a Facim, etc., etc., e para finalizar, o que começou como bandeira, Cahora Bassa é nossa, deles. Aqui importa referir, que eliminaram a dialéctica e cultivaram pequenos cursos de silenciamento hospitalar e de comunicação, um pouco por toda casa, no quintal, na varanda, no quarto, na sala.

Chegados a este ponto, apenas sobrava o verdadeiro doutoramento, PHD, feito não por módulos e exames no exterior, mas sim presencial e fora do país. Universidade escolhida: Credit Suisse. Tutor: Privinvest, especialidade: dívidas ocultas. Um tratado sobre roubo e calote, que só os experts a pudessem entender, para que não houvesse dúvidas da qualidade de formação dos quadros dessa turma. Mas porque conhecimento e boas práticas não ocupam espaço, hoje por hoje, fazem pequenos cursos de pós graduação; elaboram contratos com eles próprios, ensaiam doutrinas moralistas de amor a pátria, disseminam o perigo bacoco da ingerência, evocam cinicamente o medo do imperialismo. Parece-me, estou no terreno das suposições, todas elas alimentadas pelos nossos meios de comunicação, que lutam na adversidade da verdade.


Este foi o meu pensamento delirante, (tomara, quem não deliraria em face de uma fraude desta dimensão) que pode não estar de acordo com os factos reais, contundo, tentando a busca de razões e motivos, da nossa desdita permissividade aos gatunos, que foram ao erário público, e que empenharam o nosso e dos nossos, o futuro. Mas somos todos chamados a reflectir, mesmo delirando, para encontrarmos as razões e causas, de modo a evitar possíveis futuros desaires. E no fundo, bem no fundo, para que nos tempos vindouros não sejamos, todos nós, conscientes ou incautos, coniventes e/ou permissivos, enredados noutra trama, busquemos a cidadania, combatendo todos estes e outros sinais de ausência de honestidade, como parece que foi sendo admitido, porque não era comigo e não me atingia, para no fim compreendermos, que estes passos desonestos dirigidos a outros, conferiram as habilidades e teias de compromisso, que acabaram neste desaire nacional, que no final, nos atinge indiferentemente de, raça, filiação partidária, sexo, religião. Estou apenas com dúvidas, se independentemente da tribo. Mas resumindo, o logro mais por inoperância que por habilidade.