por Lo-Chi
Tenho feito da noite, minha confidente. Uma amiga. Tenho
conversado com ela, e falo da vida, dos anseios e ideais. Com ela falo do
quotidiano. Ela, num douto silêncio, tem escutado pacientemente, e normalmente, é frugal no falar; e quando decidi, exerce com um natural fascínio. É agradável,
ouvi-la num som quase inaudível, onde inalterável tem descrito o que tem visto,
o que lhe agrada e desagrada. Quando se embala, excepcionalmente, é rica em
factos observados.
A noite uma companheira, nela repouso, com ela
converso. Converso e falo de ti, como talvez nunca falei contigo. A razão não
sei. Paciente e inteligente tem escutado o meu caudal de palavras. Com a noite
tenho falado do teu jeitinho, do teu sorriso, dos teus anseios e receios, do
teu riso raro e breve. Tenho falado de ti e da tua tristeza. Uma vez falando de
ti, segredei-lhe emocionado, quase num sussurro:
”Com ela, tudo se apresenta com uma certa estética.
Mesmo a própria tristeza, nela aparece com um quê de belo, muitas vezes com
algo poético.” Notei que se manteve estranhamente atenta e prossegui. ”Recordo-me
que por duas vezes estive com ela chorando. Sim, o primeiro e o último
encontro. Chorava por duas razões diferentes – dizia eu – mas com dois
denominadores comuns.”
Aqui a noite não se conteve, interrompeu, para
perguntar num acento: *”Chorar porquê, e quais esses denominadores comuns?”
Esquivando a sequência por conveniência, comecei
respondendo a última parte. ”A dor e a tristeza – disse e prossegui rapidamente
– mas o chorar dela, era diferente do comum. Não se ouvia nada que fosse um
soluço, não se via nada que fosse uma cara desfigurada, um músculo contraído.
Apenas se pressentia na expressão triste do rosto. Notava-se no deslizar,
suave, de duas lágrimas que se desfiavam como dois cristais liquefeitos,
rolando numa face lisa, linda e paradoxalmente … bela. Nesse choro adivinhei a
dor pela face inexpressiva. Vi a magnitude pelo brilho dos olhos, pela amargura
do bater do coração, pelo silêncio da boca humedecida e pela serenidade do
corpo voluntariamente submisso. Reconheci a tristeza pelo silêncio funesto com
que recebia as minhas palavras desajeitadas que se pretendiam consoladoras.”
Olhei para a noite que num silêncio que perturbava,
ouvia-me. Fiz uma pausa que não resultou, silenciosa se manteve. *”Se fosse
pintor – disse eu ainda – faria um quadro, onde poria todo o meu talento e dela
faria a personificação suprema da estética, de forma que as pessoas dissessem:
Que bela essa tristeza!”
Perdido em
pensamentos meus, num segundo, rememorei o quão belo, não obstante a tristeza
que banhava tua alma, foi ver tua face, ausente, molhada em pranto, qual uma pétala da açucena molhada pelo
orvalho nas primeiras horas do alvor.
”Pinta com palavras”- ouvi a noite dizer.
”Acabo de pintar”- retorqui em resposta
Oiço ela a rir e eu cúmplice, ri também. Para incauto,
dizer: ”De qualquer dos modos, farei um dia um poema.”
Sem esperar, remata-me matreira, em jeito de resposta:
”Sempre te ouvi dizer que não gostavas de falar do futuro.”
Engoli em seco.
Com a noite, quiçá pela segurança e confiança que me
inspira, falo do presente, do passado, e com frequência pouco habitual, do
futuro. Falo de ti, e tenho segredado os meus lícitos receios. Com a noite
divagando, tenho desfolhado a minha memória e…discorrem factos. Quando falo de
ti, tenho a impressão que melhor te conheço. Tu ausente, na noite, tenho
procurado encontrar-me e … encontrar-te.
in "Cartas Intimas"
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