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sábado, 31 de agosto de 2013

Um caso feito por acaso


por Lo-Chi

Se há acasos agradáveis, o que é raro, em nós, dois acontecimentos ao acaso, marcaram a nossa relação.

O primeiro foi o facto de ter-te visto, e numa visão fugaz, me teres enchido as medidas e, na emoção em ebulição, não ter sido capaz de conter um comentário inadvertido: vi aquela miúda está uma bomba! Quase literalmente, foi esta a minha afirmação que se quis ingénua, sem intenção, e apenas no jeito de uma interjeição.

O segundo não menos raro – pelos riscos que isso comporta – alguém que ouviu a exclamação, talvez pelo vigor da mensagem, haver levado, sem pedido, nem consentimento, a imagem do retrato. E talvez um terceiro acaso, o vigor da mensagem haver tocado a pessoa retratada, e nesse caso, a destinatária por acidente.

Dentro da ignorância do facto de haverem levado a mensagem, me vi; diversas vezes, no terreno escorregadio e perigoso, quando incauto e talvez sem forças para poder vencer a tentação; contemplando-te com um olhar carregado dum embevecimento comovido. Não poucas vezes o olhar passou as fronteiras dum ingénuo olhar e descambou na ânsia evidente de um anelo desesperado.

Era assim, desse jeito, que algumas vezes os nossos olhares se cruzavam – o meu cheio de expressão contida, mas quase incontrolável, e o teu que eu via como que decifrando a mensagem e dando simultaneamente uma dose de alento e esperança – e eu morria na ânsia. Na ânsia de te abraçar, na ânsia de dizer coisas bonitas. Não só, mas também morria na miscelânea de outras ânsias inconfessáveis. Perdido fiquei, louco, me achei quando atónito pude divisar, na contraluz, o entremeio das tuas coxas, dado a ver por um vestido duma transparência dadivosa, de tal jeito que o meu olhar clandestino e furtivo pode ver a cor das cuecas que cobria a tua nudez: cor-de-rosa! Disse para mim; que escultura de mulher. E nesse instante como um astro do sistema solar, entrei em órbita e perdi-me nas galáxias do universo cor-de-rosa.

Quando subitamente e tão fora do clássico nos envolvemos, senti que nunca  uma expectativa, em mim, tão grande, ficou tão aquém do real. Tu real muitas vezes melhor do que te imaginei, ou imaginei que vi nos olhares furtivos. O teu corpo de gazela, os teus beijos, a tua ânsia, a tua fúria, o teu suspiro, o teu doce e até envergonhado jeito de acariciar. A tua forma aberta de te entregares. A tua forma desinibida de falares do passado. O teu jeito subtil de ser e fazer, pôs-me agradavelmente rendido aos teus encantos.


                                                                                                                            in "Cartas Intimas"

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Quelimane no coração -Comoventes reencontros de chuabos*


por Lo-Chi

Esta semana foi para mim particularmente comovente, posto que foi rica em gratos encontros com pessoas de quem nutro simpatia. Se com uns convivemos recordando o antanho, com outros, tendo mais tempo disponível, foi possível proporcionar encontros maravilhosos com outros companheiros que já não se viam, fazia um bom par de anos. Interessante duplamente foi levá-los aos nossos locais referências da infância e juventude, rever os sabores e odores tão distantes quanto próximos; voltar às origens.  
 
Amilcar de Melo e Eduarto White
Fomos à Nicoadala tramitar documentos bem como visitar um amigo com um projecto promissor na sua fase de crescimento e expansão. E como bons amigos que somos, para além da conversa, com temas de actualidade, enriquecemo-la com os assuntos do antigamente, desde o basquete à escola técnica, das nossas bifurcações de destino e o que coube a cada um, sempre pintalgados com a nostalgia dos momentos comuns, vistos já com olhos de saudade que tira a objectividade dos fenómenos, alterados pela mudança radical na passagem de factos para contos, e como o  ditado determina, pontos a mais e a menos aconteceram: como diria a minha avó, compreensíveis exageros de circunstância.
 
Banqueiro, Gito Jona, Beto Palha
Fomos à Namacata  comer aquela galinha verdadeiramente a cafreal, sentir a brisa filtrada pelas mangueiras, ver os êrrúndulos – rolas – rulhando nos fios de energia, e nos seus vôos acrobáticos seduzindo as fêmeas, ou os nandindis  manietados e impotentes a verem as suas mutipas descaradamente roubadas pelo prepotente jôghorrô.
  Os êrrúndulos em tarde romântica

Visitamos aquelas baixas de arrozais outrora dos nossos avoengos. Hoje, ou abandonadas e usurpadas, ou na fase de recuperação para outros fôlegos e projectos, onde cruzamos com céleres e indomáveis perdizes. Foram sete horas de um intenso domingo, onde a conversa jorrava as catadupas, quase sempre  atropelavamo-nos, numa ânsia pueril. Só de la saídos, quando literalmente expulsos por um sujeito inoportuno: o mosquito do início da noite.

Alvaro Ó da Silva(Varito) e Amilcar de Melo (Chilo)
Fomos ao Kansa rever; ajudados pelo local; as nossas futeboladas, os nossos primeiros tudo, as histórias dos nossos velhotes, as intrigas, as nossas traquinices. Vimos o local onde comprávamos as argolas do velho Lázaro, os canudos da dona Mery; imaginamos a mangueira onde o velho Paulo nos cortava o cabelo, brindando-nos ora fofocas ora histórias rocambolescas; recordamos o insólito Katulinho Umaboleia, sapateiro, que com sua própria adaga, numa posição incorrecta de corte de borracha de pneu, acabou fazendo um lanho em próprio abdómen; visualizamos as lojas do Machiel e do Manuel, com o seu desenho relativamente alterado; falamos das nossas farras. Mas o momento auge foi o encontro com a Belinha Marques, refeita das agruras da vida, que nos presenteou uma tarde cheia de acepipes; o pende assado, com chatinye de mumbakwo, camarão com nhatandho, água e sal de sarhabuanha e sôlôlo, caranguejo cozido, e finalmente o famoso tôdhwé, acompanhado com um maravilhoso achar de limão, tendo como base um bom “três tempos”- murrada de mandioca**. E como não somos chauvinistas, chamamos a mesa para nos acompanhar um bom vinho tinto, cuja marca: A Cepa Alentejana. Saímos de lá com o volume e o tom das vozes manifestamente alterados. E lampeiros, regressamos às nossas casas, hoje na cidade, numa conversa no estilo do antigamente, mais aos berros do que falando, contando anedotas, com especial destaque para aquela do milhafre, da autoria da Mercy Lázaro, contada numa mistura de mais de três idiomas, inglês, mal falado claro, português, chuabo e sena, bem no jeito daqueles meninos de bairro da preferia que fomos.
 
Beto Palha, Tótó Barros, Chilo, Belinha Marques-Bairro Kansa

E quando a casa chegado, fui impelido ao meu caderno arquivado na prateleira das desilusões dos sonhos não conseguidos, onde no meu desiderato de poeta que se queria, na sua ingenuidade, fez aquele pretenso poema incipiente e li.- e tem piada que me comoveu: Quero voltar a ser criança/esperar com ansiedade a época de manga/improvisar o que mastigar/quando com fome estiver.//Quero voltar a ser aquele menino,/calções chapados, joelhos negros e calejados/inventar brincadeiras nas horas de tédio/e fugir as mandanças da mamã.//Quero ser aquele despreocupado ocupado//comer e querer sair para as brincadeiras/sem pensar em fazer a sesta.//Quero ser aquele que fugia/apesar de sujo, daquele banho obrigatório/e dormia num só sono/quando o sol assim fazia.
 Amilcar Gil de Melo-bairro Kansa
* chuabos- naturais da cidade de Quelimane, Provincia da Zambezia- Mozambique
**alguns  pratos tradicionais da cidade de Quelimane.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Pensamentos e emoções



Minha alma são retalhos colados, da existência, feito passado. No futuro, nada existe de confiança nem esperança, se não a teoria das probabilidades.

                                                                                                                      Lo-Chi


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Pedido escuso, mas sempre satisfeito


por Lo-Chi

Escreve-me uma carta! Pedido talvez escuso, se se recordar que a cada instante te faço cartas.

Umas, escritas ao telelefone, as quais pela imposição da circunstância, breves, todavia, cheias de emoção e condensadas de significado. Nelas; a sublimidade é sentida na resposta que a tua voz do outro lado do fio traz; a doçura, na tua voz rumorejante que entra no meu corpo adentro, de mansinho, trazendo ondas de gozo que fazem do momento a cumplicidade da vida; a transcendência das meias palavras; imperativamente trazidas, para ludibriar as presenças comprometedoras; fazem o elo invisível, porém, forte e indestrutível.

Outras têm a noite como portadora, e nestas, as palavras soltas ao vento, no resguardo do sobrescrito, à noite minha confidente, digo desguarnecidamente que te amo. Descrevo os meus anelos, falo dos meus atrevimentos, da saudade que punge, do gesto louco incontido de, na alucinação de ao meu lado estares, passar as mãos no tufo da tua selva de vénus, do gesto louco incontido de amaciar com a língua cada centímetro quadrado da tua pele, sussurrar-te nos ouvidos coisas mil, e sem pensar nas consequências adversas, chupar teu pescoço e nele fazer o arrebol da alvorada.

Outras ainda, quando ouvindo música, num jeito sonâmbulo, me levanto e balanço o corpo na cadência do teu sorriso, ilusoriamente estou contigo, e fico feliz escrevendo beijos na tua boca, com o teu corpo divino aprisionado num amplexo de carícias.

Escrevo cartas meu amor, quando juntos, depois de havermos percorridos a noite em sintonia – numa viagem de ternuras, loucuras e fusões mil – pela alvorada, o sol se vai anunciando, e eu  desperto, e sub-repticiamente acordo o lençol, para que te dispa, e eu veja o teu corpo nu, de bruços, e embevecido me perca nas linhas do teu rabito encantador. E quando, no jeito maravilhosamente preguiçoso acordas, eu meio encabulado, durmo na cama dos teus carinhos que fazem do momento a cumplicidade mutuamente consentida. E nesses momentos de doce cumplicidade, palavras como limite, inconveniência, perdem a dimensão e o significado, e ficam reduzidas a nada.

Quando estou contigo, meu amor, e uma onda de ternura me acaricia, o meu olhar te vai esculpindo, debruando-te com a serenidade do momento, fazendo do teu corpo a fonte dos cânticos celestiais; aí faço cartas meu amor. Cartas que ficarão na eternidade da nossa efémera existência.




quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mulher pequena


por Lo-Chi


Ananás pequeno e doce/ sabe ser, como se fosse/ fruta descascável, suculenta/ e desejável, a eito/ da noite ao amanhecer/ que jeito, que peito/… um confeito.//

Sabe hastear a bandeira/ com amor a pátria./ Uma pátria almíscar/ em maré cheia, sabe receber/ imergindo devagar/ um banho ondulado, vai e vem/ como convém.//

Emergido, bronzeado, em gemido/ oleado, mastro lastro/ loucura e travessura, grito surdo/ reprimido, pátria amada/ plena de aventura, se flui no instante,/ um século,/ sonho havido, desejo infante.// Pátria amada, solo térreo/ canto de fada, mergulho/ desaguar de um rio/ bandeira de orgulho./ De repente, sente/ a maré se arrebenta, na areia/ desatenta, se entrega, se semeia / ao sol ou a lua desfalecida/ a espuma, nívea se esfuma./

Esvaída na praia/ pátria amada serena/ sonolenta desmaia/ paisagem linda, de brisa esculpida/ toda nua despida, que pinta.

                                                    
                                                                                                                          In "Retraro de mulher"


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A noite minha confidente


por Lo-Chi

Tenho feito da noite, minha confidente. Uma amiga. Tenho conversado com ela, e falo da vida, dos anseios e ideais. Com ela falo do quotidiano. Ela, num douto silêncio, tem escutado pacientemente, e normalmente, é frugal no falar; e quando decidi, exerce com um natural fascínio. É agradável, ouvi-la num som quase inaudível, onde inalterável tem descrito o que tem visto, o que lhe agrada e desagrada. Quando se embala, excepcionalmente, é rica em factos observados.

A noite uma companheira, nela repouso, com ela converso. Converso e falo de ti, como talvez nunca falei contigo. A razão não sei. Paciente e inteligente tem escutado o meu caudal de palavras. Com a noite tenho falado do teu jeitinho, do teu sorriso, dos teus anseios e receios, do teu riso raro e breve. Tenho falado de ti e da tua tristeza. Uma vez falando de ti, segredei-lhe emocionado, quase num sussurro:

”Com ela, tudo se apresenta com uma certa estética. Mesmo a própria tristeza, nela aparece com um quê de belo, muitas vezes com algo poético.” Notei que se manteve estranhamente atenta e prossegui. ”Recordo-me que por duas vezes estive com ela chorando. Sim, o primeiro e o último encontro. Chorava por duas razões diferentes – dizia eu – mas com dois denominadores comuns.”

Aqui a noite não se conteve, interrompeu, para perguntar num acento: *”Chorar porquê, e quais esses denominadores comuns?”

Esquivando a sequência por conveniência, comecei respondendo a última parte. ”A dor e a tristeza – disse e prossegui rapidamente – mas o chorar dela, era diferente do comum. Não se ouvia nada que fosse um soluço, não se via nada que fosse uma cara desfigurada, um músculo contraído. Apenas se pressentia na expressão triste do rosto. Notava-se no deslizar, suave, de duas lágrimas que se desfiavam como dois cristais liquefeitos, rolando numa face lisa, linda e paradoxalmente … bela. Nesse choro adivinhei a dor pela face inexpressiva. Vi a magnitude pelo brilho dos olhos, pela amargura do bater do coração, pelo silêncio da boca humedecida e pela serenidade do corpo voluntariamente submisso. Reconheci a tristeza pelo silêncio funesto com que recebia as minhas palavras desajeitadas que se pretendiam consoladoras.”

Olhei para a noite que num silêncio que perturbava, ouvia-me. Fiz uma pausa que não resultou, silenciosa se manteve. *”Se fosse pintor – disse eu ainda – faria um quadro, onde poria todo o meu talento e dela faria a personificação suprema da estética, de forma que as pessoas dissessem: Que bela essa tristeza!”

Perdido  em pensamentos meus, num segundo, rememorei o quão belo, não obstante a tristeza que banhava tua alma, foi ver tua face, ausente, molhada em pranto,  qual uma pétala da açucena molhada pelo orvalho nas primeiras horas do alvor.

”Pinta com palavras”- ouvi a noite dizer.

”Acabo de pintar”- retorqui em resposta

Oiço ela a rir e eu cúmplice, ri também. Para incauto, dizer: ”De qualquer dos modos, farei um dia um poema.”

Sem esperar, remata-me matreira, em jeito de resposta: ”Sempre te ouvi dizer que não gostavas de falar do futuro.”

Engoli em seco.

Com a noite, quiçá pela segurança e confiança que me inspira, falo do presente, do passado, e com frequência pouco habitual, do futuro. Falo de ti, e tenho segredado os meus lícitos receios. Com a noite divagando, tenho desfolhado a minha memória e…discorrem factos. Quando falo de ti, tenho a impressão que melhor te conheço. Tu ausente, na noite, tenho procurado encontrar-me e … encontrar-te.

                                                                                                                          in "Cartas Intimas"

 

 





domingo, 11 de agosto de 2013

Malaika


por Lo-Chi

Toda ela é campo, musgo, canto, montanha, planície, cheiro a terra molhada, fetiche, flor silvestre, de orvalho atoalhada, relva agreste, capim, plantada em mim.

Seu andar, música divina, trauteio de um canto, no qual me encanto, me anima, em cada esquina que  passar a vejo. Tem curvas de apetência, de aventuras; umas suaves, outras apertadas perigosas.

Sua boca a doca, onde a minha se atraca, com a sua se abraça. Manga, castanha, sumo de cajú, mafurra, chindú, são os sabores. Fruto de abelha, mel, as palavras, de carinho debruadas, pele, a minha se arrepia, no sussurro de cada uma. Seu falar, trinar de passarinho, de mansinho, a alegria se expressa, simples, natural, harmonia e sedução, verdade emoção, nessa sinfonia.

Olhos seus, chindus são, em cada mirada, reluzentes, sei que não mentes, nesse brilho infindo. O olhar; a frescura do nascer do sol, o calor luminoso do meio-dia, do pôr-de-sol a expectativa, e da noite o enigma.

Fino, o corpo tropical, tecido celestial, de África tem o tom, onde sai o hino angelical. Árvore é, palmeira, no seu jeito fagueira, quem disse que era; fruta é, tôgôma, manga, mathiêlê; jambalão, anona. Nua, é a lua: cândida, argêntea, suave, iluminada. Seu abraço, água de lanho, me amasso nesse banho. Seu ventre, colcha, lisa acolhedora, concha, a cama, de quem dormir adora, nos braços de quem é âncora.


Sua coxa, percorrida, no compasso e na corrida, prelúdio de magias, feitiços e arrepios, me enlouquece. Sua erva negra me envaidece, traz promessas, de quem sem pressa, chega a flor de pétalas da vida. A flor se desabrocha, se abre, devagar, devagar, devagarinho, meu passarinho, de mansinho, em minha mão aconchegada, gruta acolhedora, fonte de águas  de prazeres, desagua, o mar do nosso amor. A flor, feita de pétalas coloridas, recebe a vela, falo, mastro, música de galo, que a madrugada presenteia, a união da noite e do dia. Quem sabia? Eu apenas intuía, que no ardor que não doía, pássaro livre no desfalecer, suga enxuga, espasmo que amo. Desfalecidos, a sobremesa na conversa se faz, mãos serenas amenas, passeiam em nós, nós desfeitos, com peitos arfantes; amantes.

                                                                                                                        in " retrato de mulher"

Os meus próximos textos



Vou dar uma guinada enorme no estilo de textos que passarei a publicar, aqui neste blogue. Vou entrar num estilo muito próximo do poema em prosa, com um conteúdo erótico sentimental, sem contudo entrar, como se poderia dizer nos filmes, no hardcore nem sequer o softcore, apenas e só muito erotismo e sentimento. Estarão os mesmo agrupados em dois grupos; um que designei de "Cartas Intimas" e outras de " Retratos de mulher" . Ficara muito próximo daquilo que uns chamaram o género epistolar, com as suas nuances.

Lo-Chi

terça-feira, 6 de agosto de 2013

A ciência de mãos dadas com o obscurantismo


por Lo-Chi

Quando sentado na mesa de bar, e só, tens a tendência incauta de, por força de circunstância, ouvir o papo das mesas vizinhas, até por que, pelo ambiente e envolvência, as conversas vão-se derramando alto, umas vezes, sendo incómodo, se porventura com uma dama estiveres e necessitares de silêncio, outras, propiciando aos metediços, entrar na conversa, mesmo que não chamado à ribalta. Nesse dia, encontrava-me só,  e para não fugir à tendência, algumas vezes, tentado fiquei, em fazer uma afirmação, para concordar ou discordar,  não sei bem com quê, todavia não  fiz, não sei, se por razões a ter com o meu temperamento, algumas vezes reservado, ou por consequência de os  resquícios de boa educação ter coibido, que a minha língua tomasse asas, e voasse ao belo prazer da conversa, conversa que decorria numa mesa vizinha. Verdade porém, é que a conversa tomava um ritmo animado, à medida que os copos se iam vazando. E essa mesa  tinha uma composição, onde a equanimidade entre homens e mulheres estava evidente. Não só no número, assim como, nas bebidas  que descarregavam para o bucho. E pelas conversas e temas, fui concluindo que eram professores, e leccionavam na mesma escola.

No meio do papo já acelerado, e retocado pela celeridade e intensidade que o álcool dá, estava um indivíduo, com ar de quem sabe o que fala, dizendo para duas das senhoras, Vocês que não tem família..., não chegou a acabar a frase, para logo ser interpelado, Quem não tem família!!?...nós não temos família? O quê que isso quer significar?, contrapôs a questão, com os olhos reluzentes de raiva, parecendo adivinhar, o que o colega, com ar de uma certa juventude, estava a querer significar. Mas este, ou incauto, ou de coragem, ou por falta de conhecimento da voracidade e ferocidade das mulheres, precisou, Vocês que não são casadas, rematou, precisando o que era para ele família. Ao que uma das senhoras percebendo a mensagem, não se fez rogada, e feroz se assanha, contra o colega atrevido, Estás a querer dizer que, eu que tenho filho, não tenho família, arreganhou os dentes, e a outra, uma terceira, como a provocar perguntou-o, Queres dizer, que tu que estas casado, tens filho, tens família?, perguntou-lhe para continuar, numa pergunta já por si esclarecedora, Eu que tenho o meu sócio, que tenho um filho não tenho família?!, uma dúvida carregada de ironia, quase anunciando, que vinha dai chumbo de alto calibre. Antes que o visado pudesse responder, um outro homem, corajoso, apercebendo-se, que o seu homólogo de sexo se havia metido em ninho de vespa, tenta atenuar a coisa, Bem, parece que não é bem isso que o Teomóteo quis dizer,  contudo este, sem ter ainda avaliado a situação, corrige o o advogado do diabo, diabo esse, em vias de ser esfolado, Foi precisamente isso que quis dizer, podes considerar que uma relação de amantimos constitui família?, não acabou a prelecção, já as damas se haviam unido automaticamente, estavam prontas para lhe porem na frigideira. Como se pode adivinhar, nesta fase, todas as armas serviam para aniquilar o pobre homem, mesmo que para tal, elas tivessem que falar mal delas próprias, Em primeiro lugar, quem te disse a ti, que teu filho, é teu filho?, como se pode ver, o tiro era de uma arma pesada e de destruição em massa, Eu tenho a certeza que meu filho, é meu, disse o mau da fita, que estava na mira das balas mortíferas das damas, já a bufarem de raiva e ódio a mistura, visto que o meu filho é parecido a mim, concluiu inocente o rapaz, que ainda não tinha notado, em que buraco se havia metido, Eeehhh, exclamam as damas em coro, quem foi que te disse, que o ser parecido atesta a paternidade?, perguntam as três em coro, Como não atesta?!, perguntou o inquirido, e eu visionando-o, já na antecâmara da morgue, vou tentando adivinhar por onde iria o raciocínio delas, e entrementes, disse com os meus botões, Queres ver que estas damas vão argumentar, com um cinismo macabro, que o filho dele, era do pai, do primo, ou do irmão?, e nessa perspectiva, fiquei preparado, para ver, impotente, a pedrada que o coitado iria receber, como golpe de misericórdia, Joana, explica a esse pobre coitado como é que essas coisas funcionam, disse uma com ar de quem sabe o que está a falar, Meu caro colega, uma mulher pode ficar grávida do outro homem e apresentar o filho como sendo do marido, e o filho não sendo, ser parecido ao esposo!, essa baralhou-me completamente, se não fosse alguém da mesa, que se me antecipou, teria eu, metendo o nariz onde não era chamado, perguntado, Como assim, de um outro homem, e o filho sair parecido ao marido??!!, perguntou um, que havia ficado muito tempo calado, bem a margem da bagunça, Pois é meu caro colega, repetiu a dama, basta apenas que ela com um pouco de paciência, calma, coragem e carinho,  uma bacia com água para que o seu marido lave uma parte do seu corpo, mãos, cara, ou pé, e dessa água, ela beba, para que  resolva o problema, vai daí que o visado no aniquilamento se contrapõe argumentando, Não acredito!! Não acredito que vocês como professoras, que têm, ou deviam ter, uma visão científica das coisas e do mundo, entram nessas crendices?, disse com um ar mais calmo e sossegado, Essa não, por favor colegas!, o que ensaiara ser advogado, volta a cena, desta vez advogando a contra-parte e outras filosofias,  Cuidado, que muitas vezes aqui em África, a ciência e o obscurantismo andam de mãos dadas, para a Joana, rematar, Eu se fosse a ti, que estás tão convicto da tua paternidade, em relação ao teu filho, aí, seria mais científico, e faria o teste do DNA, e no teu caso específico, ficarias surpreendido com o resultado, e aí, notou-se um alterar da feição do visado, dando ares, de que alguma dúvida, se havia instalado na mente, e minado a sua convicção. Lá se foi a ciência para a maneta, ou juntou-se ao obscurantismo?!