por Lo-Chi
Todos nós, que crescemos em bairros sub-urbanos*, acabamos tendo uma
infância similar, onde as brincadeiras imperam, os gozos, as alcunhas são o pão
nosso de cada dia. A vivência nos bairros acabam sendo quase que tirada a papel
químico. Estou aqui para falar um pouco da vida desses centros populacionais; e
no caso, das figuras marcantes, do meu Kansa, o qual se situa bem na cintura da
cidade de Quelimane. Esses famosos, eram-no pela singularidade de
comportamento, fugidos do protótipo do cidadão probo. A maior parte deles, não
viviam no bairro, faziam deste o seu espaço de trânsito, entre a cidade de
cimento e outros bairros sub-urbanos*, mas deixando a sua marca, e normalmente
conhecidos pela sua alcunha.
Domingos Xirico, uma figura de estatura média, habitualmente
auto-transportada de bicicleta, cuja alcunha, Xirico, acrescida ao nome, advinha, dizem os mais velhos, do facto de um
fenómeno que o levou temporariamente as grades, afirmam uns, enquanto outros
afiançavam que com alguma frequência se hospedava no xadrez, e por analogia ao
pássaro xirico engaiolado, assim passou a ser conhecido. Mas a sua fama também
ganhou forma e proporção, como sendo o homem das viuvas, de acordo com os
relatos do tempo. Nenhuma se lhe escapava, com o devido desconto como é claro.
Dizem os contos da altura, que bastava anunciar-se a morte de alguém do sexo
masculino, cujo cônjuge fosse de não se desperdiçar, que era quanto bastasse, para
a nossa figuraça começar a manusear os seus tentáculos.
Vasco de Oliveira, figura conhecida, não apenas no meu bairro, como na
maior parte dos outros da cidade, por um facto que se pode dizer, que quase
comum no perfil dos nossos pais, na altura; vários filhos e com senhoras
diferentes. Porém o caso do Vasco de Oliveira, contabilista de profissão,
contabilizou senhoras e filhos, superiormente acima dos números já exagerados
dos nossos pais. Bateu verdadeiramente o recorde do guiness book provincial, fruto de amparos a damas sedentas de
calor. O número era tão grande que ficou indeterminado.
O Aligy, franzino, de altura acima da média, com uma infância
caracterizada pela alergia pelos livros, acabou como porteiro do cinema Águia,
onde como um cão de fila, adjectivávamos nós, apurava o seu faro para impedir
infiltrados, nós, os desafortunados do bolso, que entretanto queríamos
alimentar a nossa cultura, através da sétima arte, porém quase sempre frustrada
a tentativa, quando sem o bilhete autorizador, devido ao zelo implacável desta
figura. Outra característica sua, que granjeou fama, foi a sua habilidade na
arte de sambar, que punha à apreciação pública, todos os meses de Fevereiro na
semana carnavalesca. Contudo, uma outra característica, essa mais clandestina e
menos pública, todavia conhecida por nós, catapultou-o a outros níveis de
figura incontornável nos nossos temas de conversa de bairro, era o facto de, ou
nos filmes picantes ou nas suas investidas na violação clandestina de
determinadas intimidades privadas femininas, se embalar em momentos de euforia
manual.
A grande figura da miudagem, objecto de gáudio da meninice do bairro,
era sem dúvida o sapateiro de profissão, mais conhecido pelo inexplicável e
auto-denominado, David Campeão do Mundo. Normalmente ébrio, com monólogos de
alta intensidade, rasgando os céus do bairro, fazia-se anunciar na sua
passagem, quase sempre acompanhado de uma multidão de putos, seus adeptos, que
éramos nós. No seu ar, meio de ébrio e meio de mendigo, de quando em vez, tinha
tiradas com uma profundidade incomum, bem como frases que ficavam nas nossas
mentes: a vida não tem rascunho! Sentenciava. Quando não, avisava: o
arrependimento é o rei dos atrasados. Outras vezes, justificava-se ou fazia-se
entender: sofrer com paciência a fraqueza do nosso próximo. Sem sequer imaginar
que ele teria tido alguma experiência amorosa, tira-me esta: O desencanto é uma
fase dos grandes amores e o fim dos pequenos. De quem não se conhecia gosto de
leitura, nem relacionamento sentimental, estas frases levavam, aos mais
avisados e perspicazes, a concluir, que esta personalidade era de todo enigmática
e que decerto a sua aparência era uma
fraude.
Outra figura não menos hilariante; motivo de um cardume de miudos ao seu
encalço, quando pelo bairro transitasse, cuja profissão era também sapateiro,
residente num bairro vizinho, o Moreira; era o Vicente, designado variavelmente
por Vicente Namarrogolo ou por Vicente Cólô, o qual ficou famosamente
conhecido, por ser um grande protector das suas goiabeiras, carregadas de
goiabas, claro, as quais eram um engodo para a miudagem se fazer a elas, sob o
risco de ser baleada pela fisga do proprietário, mesmo que por ele autorizado,
cujo pretexto se figura na pergunta que impunha: Eu disse para tirar dois guião, um guião?
Sujeito bem parecido, sempre janota, de boas famílias, contudo, com
duvidoso gosto pelo trabalho, nos últimos tempos então, sofrendo de uma
profunda alergia a qualquer esforço criativo de bens, porém bem relacionado,
dando-lhe o facto, a prerrogativa de se fazer boémio, resumindo: un bon vivent. Carlos Pedro, mais
conhecido pelo nome de 101, pelo hábito de impôr a sua presença em todas as
festas famosas da cidade, convidado ou não, de tal jeito que se tivesses 100
convidados tinhas que contar com mais um, que era o famoso pendura; daí a
alcunha do 101.
Mecânicos haviam muitos, uns muito bons e outros nem tanto assim, porém,
um destacava-se pela singularidade de estado etílico quase saturado e
permanente, cuja bebedeira nunca se sabia se era desse dia ou se do dia
anterior. Não obstante, quanto mais grosso mais competente, segundo os
testemunhos dos nossos pais. Diziam que nesse estado qualquer problema do motor
ele diagnosticava, apenas abrindo o capot do carro e ouvindo-o trabalhar,
determinava com autoridade e competência e dava-lhe o remédio exacto. E mais, o
seu corpo estava tão embebido em álcool, que em vida jamais apanhou infecção
que fosse! Nome: Ernesto Falso Lobo, mais conhecido por “champion”, mecânico de
mão cheia, assim o chamavam. Decerto o advento dos actuais computadores
auxiliares de diagnóstico
Agostinho Maluco, assim chamado pelo seu ar quase infantil, que lhe dava
um aspecto físico de atrasado mental, porém de uma inteligência reconhecida e
de aspecto imaculadamente limpo. Não obstante este pequeno grande pormenor, era
motivo de chacota da miudagem. Após ter feito o seminário menor, enveredou pela
vida de cidadão comum, deixando aparentemente o celibato, meteu-se em alguns
concursos para o aparelho do estado, tendo ficado nos primeiros lugares. Mas
optando pelo lugar de contínuo de uma das escolas secundárias, apesar de ter
conseguido na altura o 5.o ano do liceu como equivalência. E quando lhe
perguntamos, porque é que queria ir para contínuo, ele rapidamente respondeu:
para continuar!
Figura burlesca, bobo de festa das maldades dos meninos de bairro, era o
Aligybai. Uma vestimenta a roçar o ridículo, cores vivas e desencontradas, com
uma aparência própria de palhaço da corte, gordo, barrigudo, porém de altura
respeitável. Comia em qualquer casa, na qual lhe dessem o mínimo de confiança,
com um despreendimento, a coberto da ingénua parvoíce, que ele próprio
alimentava, com o ar de maior desgraçado do mundo. As crianças que o
acompanhavam no acto de atravessar o bairro, faziam-no sempre com a invariável
música que tinha como letra: Alujubay khana mwiana. Aligybai não tem mulher.
Quando morreu, deu-se com uma história surpreendente. O Aligybai, para além de
ter uma filha, o que desmentia o boato de que era eunuco, bem como mais surpreendente
ainda, era possuidor de uma conta bancária que embasbacou muitos, como
ultrapassava a de muitos dos que lhe deram de comer em vida.
Naquele tempo, não fazia parte do inventário léxico usual, os termos
fofoqueiro, nem sequer boateiro. Aliás ele até nem era. O velho Paulo, de profissão barbeiro, apenas
contava histórias reais e verídicas, dando-lhe uma pitada de interesse, com um
ou outro ingrediente da sua autoria. Longe dele a intenção de faltar a verdade,
apenas imperava o dever de dar mais graça e interesse ao facto. Certeza, tínhamos todos nós, que era o homem mais bem
informado do bairro. E a ele recorríamos,
como hoje recorremos aos midias, com
o pequeníssimo pormenor de que na altura não havia internet. Quando ias para
cortar o cabelo, ele nunca recorreu ao televisor nem sequer ao rádio de pilhas,
para entreter, e nem sequer ao ar condicionado, para prender os seus clientes.
Ele próprio assumia as despesas da atracção, e informava a clientela com
histórias verídicas, com alguns pontos acrescidos. Figura castiça e já
extinguida. Já não nascem mais paulos barbeiros.
Que saudades da minha infância, algumas vezes involuntariamente maldosa
mas sempre com aquela pueril ingenuidade; saudades também do meu bairro, com
estas e aquelas outras todas personalidades que não falei, que preenchiam o
nosso universo de aventuras idílicas. Sarabá bairro Kansa.
____
Nota: uma amiga desafiou-me a falar também das figuraças femininas da
altura. Porém a peculiar longevidade da mulher, coibe-me de fazê-lo posto que
algumas delas ainda em vida. Isso tendo em consideração o facto de que a
brincadeira tem a virtude de divertir, porém o perigo de ferir, como ja referi
uma vez
*Esta grafia é propositada
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