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quarta-feira, 22 de maio de 2013

Cronistas e crónicas




por Lo-Chi



Crónica, cuja definição e integração me escapa, mas com a percepção de que é um género que se indefine entre o literário e o jornalístico, desde cedo me cativou. E mais do que as notícias, eram as crónicas o móbil da minha ligação com os jornais e as revistas semanais, como por exemplo, o jornal Notícias, na altura, e a revista Tempo, e mesmo hoje com os hebdomadários, elas continuam sendo o meu atractivo primeiro. Desde cedo, lia-as; e aquelas que me surpreendiam, eu as recortava e punha-as num arquivo pessoal; de tempos a tempos revisitava-as.

Já não me recordo o nome da coluna, porém registado o do colunista cuja graça, Nuno Bermudes, foi um dos responsáveis pela meu gostar por este género de expressão, e sempre, quando abrisse o Notícias, eu corria a sua coluna. Recordo-me da primeira que li, uma crónica de viagem a Ponta de Ouro, e que me marcou indelevelmente. Essa crónica falava de uma viagem atribulada, cujas condições do terreno eram tão péssimas, que quando ele chegou ao destino, e foi fazer o inventário aos orgãos internos do seu corpo; assustou-se, porque o coração não estava no seu lugar, na vez dele encontrava-se os intestinos, quando procurou pelo pâncreas estava no lugar dos intestinos e o coração no lugar do fígado. Essa crónica marcou-me definitivamente pela imaginação e criatividade. E quiçá, foi quem me levou a uma paixão desmedida às crónicas. E a partir daí, fui entrando em outras como por exemplo, uma outra coluna semanal, do mesmo jornal designada “Zambézia de lés-a-lés”.

Aerosa Pena, considerado por muitos como o ícone desse género, em Moçambique, talvez o tenha lido na revista tempo. Porém a minha relação consciente, próxima, com ele, de cronista e leitor, foi definitivamente no seu livro, que figura no meu escaparate, cujo título é “O cronista”.

Sauzande Jeque e a sua coluna, semanal, “Mirante do Zambeze”, abraçou-me no primeiro contacto, pela forma mui sui generis de escrever, quase mantendo aquele rítimo, que faz adivinhar o sotaque nhúnguè. Primeiro li-o e depois fui ouvindo-o na Rádio Moçambique. E a crónica que me pôs extasiado perdia-a. Vou à Tete, numa viagem programada para o Malawi, naquelas famosas colunas que partiam de Moatize e terminavam no Zôbuè. Sou apresentado ao Sauzande e não sou capaz de ficar imune a expressão confessa de frustração, que sentia por ter perdido a crónica dele, que eu mais gostava. Afirmação que era apenas e simplesmente uma expressão de frustração, e simultaneamente manifestação de contentamento de conhecer o cronista, de quem admirava. Qual foi o meu espanto, quando do regresso do Malawi, ele naquele seu jeito, me traz uma cópia dactilografada, e oferece-me. E é com agradável prazer, que tenho as suas crónicas hoje reunidas em livro o qual muito gentilmente autografou. Vou acompanhando-o no seu “Devezenquandário”.

Fernando Manuel, o primeiro contacto que tive com ele, foi não como cronista, mas como pessoa, precisamente em Quelimane, quando com um problema de visão, ele vai a mesma, em busca de tratamento, porque naquela altura, estava um médico cirurgião oftamologista, indiano, cuja fama ultrapassava os limites da província da Zambézia e atrevia-se a chegar a capital. Foi assim que vi e conheci, em casa de um amigo comum, aquele que seria um dos meus cronistas de eleição, fora dos paradigmas, irreverente, linguagem umas vezes assepticamente arruaceira, (transportando-me ao Jorge Amado) autêntica, corajosa, completamente livre e despudorada e simultaneamente pitoresca. Quando compro o Savana uma das minhas miras é ler este cronista.

Arune Valy, os meus cruzamentos com ele sempre foram exclusivamente através das ondas cartesianas da Rádio Moçambique, onde vai contando histórias e factos a princípio de Tete, principalmente sobre os crocodilos do Zambezi e suas diabruras, e posteriormente da cidade da Beira. Não sei bem, porque carga de água, ele fazia-me sempre lembrar o Sauzande. Nunca cheguei a perceber bem porquê. Ja não o oiço há um bom par de tempos, por problema de horários.

Mia Couto, no seu “cronicando” semanal, que virou livro, deu sem dúvida uma lufada de ar fresco naquele português, língua, muito português demais, aproximando-a mais do linguajar falado, muito a jeito de levar o subúrbio ao terreiro do rei, e de certa medida, ensinou-nos a sermos um pouco mais nós mesmos, pelo menos literariamente.

José Saramago, ele um autor português de uma escrita muito densa e esotérica, pontuação revolucionária, controverso, de temas absolutamente irreverentes e ousados, recordo “Evangelo Segundo Jesus Cristo”. Aliás, até hoje, apesar de ausente terrestre, motivo de polémicas, celeumas e escarceu, ao mais alto nível político em Portugal. Como cronista, foi para mim maravilhoso ler o livro “ A bagagem do viajante”, num estilo escorreito, mas menos hermético ou talvez, menos denso e mais lépido. Com histórias, factos e análises da vida portuguesa, quando, pelo que transparece, ele labutava como jornalista.

Helder Muteia foi um dos cronitas, também dos novos tempos da nossa independência, o qual me levava a comprar o Notícias, no dia aprazado. Foi óptimo comprar o seu livro, “Nhambaro” e reler “Técnico wa Mabassa” onde descreve um personagem típico, desenrascador e desenrascado, pau para toda obra. Do Helder gosto mais dele como poeta. O seu recente livro, “ O sonho ao avesso” encheu-me as medidas, posto que ele com simples palavras quotidianas foi maravilhosamente sublime na expressão, revelando-se num eretismo único. Um livro bem conseguido.

Luís Loforte também foi um dos ímanes semanais que me atraiu aos jornais. Adorei comprar o seu livro e rever o Inhassunge retratado no seu livro, “Diálogos do desencanto” compilação das suas crónicas.

Fernando Namora, português, médico de profissão, conseguiu juntar os conhecimentos e experiência da sua profissão, com a sua sensibilidade  humana, e de uma forma competente e agradável fazer a simbiose do profissional e do humano, metamorfoseado no livro “Retalhos da vida de um médico” que me extasiou desde a primeira crónica. Dessa primeira crónica ficou-me o personagem, que de aluno cábula, salóio, motivo de chacota, quase um inexistente, que se transforma num profissional matreiro, com jogo de cintura, estabelecendo conexões, que apesar da sua quase ignorância e incompetência, sobe alto nos degraus da sociedade. Em resumo, burro mas esperto, suficiente quanto baste para saber com quantos paus se faz o “sucesso”.

Para além de cronistas, cujo conjunto da obra me levaram ao outro tipo de apreciação literária, ouve um caso de uma crónica, ao estilo da primeira que me referi, que me marcou indesfarçavelmente. Não sei quem foi o autor, sei apenas que estampada numa página da revista Tempo e se a memória não me falha, acho, se não na mesma coluna, pelo menos na mesma página da coluna “crónicas de carteira”. Guardei essa crónica como se ouro se tratasse, porém a mesma inexplicavelmente desapareceu: “O cauteleiro com óculos de aros de tartaruga”. A história situada no tempo colonial, e na cidade de Lourenço Marques fala de alguém com aspecto de cauteleiro. No final sabe-se que é um alferes militar colonial, preto, nascido na Maganja da Costa, o qual entra no café Scala, e pede um prego no pão bem passado, e daí desenvolve-se toda trama que termina em cacetes, polícia civil e polícia militar, pide, etc.. Uma épica história bem urdida, com intensidade e suspense, acredito que inspirada no dia a dia, do histórico final colonial e as contradições próprias do sistema.

PS: Ciente de que não falei de dois dinossauros, quiçá mais, Heliodoro Baptista e Carlos Cardoso, todavia senti-me sem competência nem estatura para falar deles.

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