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domingo, 28 de maio de 2017

Vela derretida

Por: Lo-Chi
Fotos do Google

Sexta-feira a noite, sentados no sofá, acariando-se mutuamente, os ânimos da libido incomumente acelerados, quando de permeio, a Viagem abstrai-se de tudo, num vago movimento contínuo, absorta, continua acariciando o Umbila, seu esposo, que neste entretanto nota a ausência da esposa, por tão impessoal que se torna o afagar. Porém, deixa, e ela prossegue com os seus movimentos autómatos, por um largo tempo, até que cansado dessa ausência, o marido irrita-se, e chama-a para a realidade. Viagem, onde estás?, num sobressalto, como que queimada, ela retira a mão que acarciava pela força da inércia. Sabes, desculpa-se, estava aqui cismada com alguns ingredientes em falta e que tinha que comprar, por causa do almoço de domingo, sorri, entreabrindo uma nesga nos lábios, deixando os seus dentes alvos se mostrarem ligeiramente, pretendo fazer bacalhau à lagareiro, e não tenho suficiente azeite de oliveira, nem tenho na garrafeirra, vinho verde, sei que gostas com bacalhau. Este desculpar é feito com aquele olhar matreiro, que derrete, e derreteria  qualquer esposo. O efeito é de tal magnitude, que o Umbila corresponde à medida do efeito. Mor, podes levar o meu cartão e fazes as compras, diz o moço, não querendo perder a oportunidade de se refastelar com o apetecido pitéu, num opíparo repasto dominical. Não há que adiar por uns míseros meticais, pensa, e acrescenta seguidamente, Vê aí na minha pasta. E a Viagem, não se faz de rogada, antes que a porca torça o rabo e a oportunidade, ainda que por um instante, largo, de ficar com um cartão de crédito, com limite ao gosto, se vá para o ralo. A madame faz-se a pasta, numa busca desenfreada, e como sempre, quando a avidez é grande, acaba toldando a vista de tal maneira, que nem as coisas debaixo do nariz conseguimos vê-las. O mesmo está sucedendo a nossa amiga Viagem, que vai e volta aos diversos compartimentos, solicitando simultaneamente a suposta localização do famoso cartão. Tão inglória é a busca, que decide pelo óbvio, vazar a pasta virando-a de avesso por cima da mesa. No espólio, para além do cartão avidamente desejado, ressalta no mesmo um comprimido, com ar de antibiótico, de uma coloração castanha, que intriga a nossa madame, e como mulher que é, trata de questionar ao esposo, a natureza e destino do comprimido, já porque os antibióticos, na posse clandestina de algum conjuge, é logo motivo de suspeita. Umbila, que comprimido é este aqui, que parece um antibiótico?, o enterpelado olha, sofre um sobressalto, que com um esforço titânico, tenta camuflar, e para não dar nas vistas gaguejando a procura do nome a inventar, investe na meia verdade, Esse comprimido chama-se Furumbao, foi o médico que me receitou por causa da minha diabete, diz, e a madame intrigada pelo nome e coloração, questiona, Furo quê?, Furumbao, repete o Umbila, são uns comprimidos novos, que o meu médico deu-me como amostra, para comprar e passar a tomar um por dia, logo pela manhã, mas eu acabei esquecendo, respirou fundo e acrescentou com o objectivo de conferir maior veracidade, ele diz que são muito bons. Tu sempre o mesmo, na vez de cuidares da tua saude, esqueces-te, diz a Viagem, com o seu ar maternal. Pegando numa folha e caneta, tirada da pasta do esposo, depois de arrumá-la convenientemente, com o jeito que só as madames têm, dirigi-se ao mesmo e diz-lhe, Escreve aqui o nome desse medicamento, que vou eu mesma a farmácia comprá-lo, se esperar por ti nunca mais acontece. O Umbila ainda tentou balbuciar uma contraposição, mas olhando para a mulher, viu aquele sinal, bem seu conhecido, de determinação, que é o sobrolho arqueado, e não resistiu, e como uma criança, assentou o nome na folha, e suspirou, mais ou menos querendo significar: seja o que Deus quiser.



Sábado de manhã, afazeres de rotina, da casa e do esposo e filhos, e de seguida a Viagem sai para as compras aprazadas, com um sorriso nos lábios, já que portadora daquela coisinha, que põe toda esposa sorridente e bem disposta. Vai a mercearia, vai ao bottle store, e de seguida vai ao cabelereiro, onde tem a hora marcada, e ainda tem tempo de passar pela boutique, o cartão permite esses luxos; e não é sempre que tem a oportunidade de usufrutá-lo. Ja no fim de tudo, conforme o traçado, dirigi-se a farmácia, com o fito exclusivo de comprar o medicamento para o esposo. Confirma se o rabisco se encontra na carteira; esse nome esdrúxulo, não lembra nem ao diabo. Furumbao! Entra na farmácia, onde uma quantidade razoável de clientes era atendida. Sorriso nos lábios, faz um compasso de espera, até que uma das balconistas se liberta, dirigi-se a ela, mantendo o sorriso, solicita, Por favor, poderia arranjar-me estes comprimidos, acto contínuo retira o rabisco e lê em voz alta, Furumbao, para o meu marido, para o controlo da sua diabete. Sente no ar algo que a encomoda, vindo de alguns clientes mais próximos, risos contidos carregados de gozo, e um evidente sorriso indulgente da farmacêutica. Ao que ela, um tanto surpresa, indaga se havia dito algum disparate. A farmacêutica vendo a cara de surpresa, entendeu, pelos ossos do ofício, que havia ali algum equívoco, optando, como em todos casos que tais, numa explicação em surdina. Foi-lhe dizendo que os comprimidos não eram para combate nem controlo das diabetes, mas sim para resolver problemas de disfunção eretil. Ao que a Viagem passou de surpresa a indignação e desta a uma raiva enlouquecedora, Eu mato esse gajo, foi a única coisa que conseguiu dizer, de tão alto que falou, todo mundo a olhou. Tomando consciência, do incauto, ficou com um rubor de constrangimento e uma vontade de se enterrar. Saiu dali direitinha para casa, entrou, espumando pelos olhos, procurando o Umbila. Quando o viu, contou até três, e disse-lhe: Meu caro amigo, comprei os teus comprimidos para diabete, mas na vez de tomá-los de manhã e fora de casa, pelo menos compensa-me o vexame que passei, faz-me o favor de tomá-los, a noite na mansidão do teu lar, que já estou cansada de ter vela derretida por cá na hora da verdade.

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