Quando no panteão das palavras os “exegetas” exaltam com
jactância e cabalisticamente, alguns poucos heróis, do processo histórico de
resistência pré ou proto colonial, e não só, o equívoco está não apenas no julgamento,
errado ou intencional, como no resultado nefasto, que fazem da excelsa e
suprema realidade comum, uma excepção diminuída e desbaratada. E se na verdade
a regra constitui não excepção, lida a história de Moçambique, nos compêndios
académicos, como ela se resume oficializada, para além dos espontâneos sinais estrídulos,
empurra-nos equivocadamente para uma visão, muito além de reducionista,
cobarde, dos moçambicanos, ou das gentes que hoje constituem o que é hoje
Moçambique.
Esses sinais estrídulos, porém, vãmente silenciados, não
só reclamam a nossa essência heroica e martirizada, como desprezam a redução de
heroicidade limitada à meia dúzia de personagens, e outrossim vindicam outras
leituras, outras fontes, afinal existentes, que (da maioria passiva, ou assim
permite entender, aparece um parco herói), exibem-nos outras realidades bem
diferentes. Vasculhando a literatura colonial versada sobre Moçambique, em
especial, a parte que outrora chamavam-na de Zambézia, bem mais extensa que
actualmente, fui encontrar nos livros de F. Gavicho de Lacerda, por exemplo e
não apenas, indicações de reiterados movimentos de resistência aos invasores
portugueses, como por exemplo, quando escarrapacha, no livro “Costumes e Lendas
da Zambézia, no capítulo com o título “a Zambézia”, nas paginas 20 a 22,
referindo-se a uma região designada de Massangano, onde reinava o Bonga, que
comandava o seu potentado, que resistiu às diversas forças de Portugal, fazendo
grandes vítimas, de entre as quais, em 1888, uma expedição de mais de 500
homens, que fora completamente desbaratada, e apenas sobreviveram 48 militares.
Tendo esse resistente sido infringido uma derrota, só após várias tentativas
resistidas em diversos combates, pelo Augusto Castilho. Desprezar estes factos
e não os incorporar na nossa história escrita nos compêndios académicos das classes
iniciais, para que os nossos conheçam a realidade integral dos factos e o nosso
espírito de resistência generalizada à ocupação estrangeira, significa um
insulto, para além do estralejar, à nossa condição de homens que amam sua
terra. Do mesmo autor e no mesmo livro, podemos encontrar referência de
resistências, na região do Barué. Num adverso repositório de informações,
continuando a leitura circunstancial e enquadramento temporal e adequado,
encontrou-se registos de actos de heroísmo dos nossos antepassados resistentes.
Do mesmo autor, Francisco Gavicho de Lacerda, no livro, “Os Cafres, seus usos e
costumes”, no capítulo “factos épicos e figuras de antanho”, nas páginas 131 a
132, é rico em referências de resistências dos naturais à ocupação, como as
referentes à região do Chire, pelos Makololos, bem como dos rebeldes de
Massangire em 1884, numa batalha em que puseram os portugueses em sentido, com
tal sucesso, que fizeram refém o capitão Vitorino Queiroz, o qual foi amarrado
a uma árvore, e em frente as suas rendidas tropas, aquele foi completamente
esquartejado. Outra referência do mesmo livro e autor, em 1889, o tenente de
armada Eduardo Valadim e o seu companheiro José Tomás de Almeida, foram
derrotados em Mataca. Nesse capítulo, também nos dá a conhecer, que no dia 19
de Novembro de 1891, na aringa de Mitand, o tenente de armada João de Azevedo
Coutinho, aquele a quem havia os colonialistas edificado uma estátua equestre,
na cidade de Quelimane, este e mais 2.500 homens, munidos de armas modernas, encontraram
uma forte resistência com tal magnitude, que acabou com o próprio João de
Azevedo Coutinho ferido numa perna e a morte de Andrade, Barba Menezes, Carlos
Paiva e mais de trezentos homens.
No livro, “Zambeziana, cenas da vida colonial”, um romance
trazendo nele alguns factos históricos romanceados, assinado pelo autor Emílio
San Bruno, nas páginas 26 a 27, faz referência a processos de resistência
colonial por parte dos habitantes da província do Niassa, às investidas do
coronel Paiva de Andrade na região de Muofuli, e outras na região entre os rios
Panheme e Sanhete, comandadas pelo tenente Victor Cardoso. No mesmo livro na
página 198, faz referência a resistência na província de Maputo, na aringa de
Massangano em 1858, nas margens do rio Tembe, um capitão e 26 soldados brancos
foram postos fora de combate. No que toca especificamente a região da Zambézia,
faz referência, nas páginas 27 e 28, a forte resistência do régulo Melaure,
representante dos Makololos (vide acima F. Gavicho de Lacerda) nas margens do
rio Chire, que “teve a ousadia e arrogância” de rejeitar um pretenso presente
do governo português, então representado pelo Serpa Pinto. Mais adiante nesse
mesmo livro, nas páginas 73 e 74, também é descrito que no ano de 1892, o
exército “dos maganjas” tomaram de assalto, aos portugueses, as regiões do,
Licungo, Macuze, Nameduro e o Inhamacurra, onde após um período retomado pelos
colonos portugueses, porém escorraçados novamente em 1895, e só retomada pelo Azevedo
Coutinho, com um exército de mais de 3.000 homens. Há referência ainda que
sucinta, mas evidente, no mesmo livro na página 103 e no seu rodapé, da
resistência dos régulos descendentes do Macombé*, este descendente do antigo
Imperador de Monomotapa, cuja presença intimidatória para os portugueses, se
fazia sentir nas vias para o Barué, Chiôco, Chiranga, Cachomba e Zumbo.
Compulsados esses livros e lidos nas perspectivas
adequadas, percebendo os circunstancialismos, deixam-nos a sensação
benevolente, da nossa parte, de que a nossa “história” oficial, se séria,
ficou, na preguiça ou comodidade, elidida, porque os tantos heróis foram
relegados ao etecetera subentendido. E haver, a maior parte deste torrão
pátrio, se notabilizado, e em resposta, como se de um crime se tratasse,
esconderem essas páginas, rasgando-as sumariamente, ou travestificadamente desapresentadas,
fica-se com imensa dificuldade de se imputar, ao malfadado gesto, de miopia.
Posto que, lendo-se atenta e analiticamente outros historiadores que não os
nossos, que nos deveriam exaltar, encontramos, naqueles que nos espezinharam,
um reconhecimento ainda que subvertido, evidenciando o incompreensível resumo
dos nossos registos em compêndios oficiais.
No mesmo livro, acabado de referir “Zambeziana, cenas da
vida colonial”, evidencia, nas páginas 294 a 295, referências muitas, de
resistências às autoridades portuguesas. Mas ficaremos pela insistência ao nome
referido de Bonga. Para além da resistência militar, passando pela rebeldia
franca, esta que foi por mais de cinquenta anos, desde Bereco chefe da dinastia
dos Bongas, à família Cruz. Nesse trecho fica evidente, que o Bonga no seu
prazo Massangano, trucidou mais de três expedições militares portuguesas, dando
corpo e consistência ao anteriormente referido pelo F. Gavicho de Lacerda.
Continuando a ler a história, na contra-mão oficial, não
apenas dos colonizadores, bem como daqueles que fazem a estória oficial,
notamos que na vitrina da verdade, o escritor Aníbal Aleluia; insurgindo-se
contra a selectividade propositada e de fins pouco ou nada servidores a
Moçambique, no livro ”Os habitantes da memória” do Nelson Saute página 35;
reclama para a verdade, repondo o facto de a resistência, que chamou de proto
nacionalista, brotou no centro e norte, e nunca em Gaza, e que quanto a ele, só
se justifica essa tremenda falta de objectividade, um pendor fortemente (este
adverbio é meu) tribalista, e que na tentativa de repor os factos tinha em
calha um romance de mais ou menos 300 páginas, onde falaria da resistência dos
Cótis .
Estas leituras exprobram os nossos diligentes compêndios,
que de uma forma fraudulenta, ou incompetente, deixaram em mim a sensação
deletéria, com um fim último de ensaiar-se a doutrina de preeminência de uns em
relação aos outros, o que só isso pode explicar o cantar-se, quanto baste, um
herói, cuja grandeza, não pode em nome da verdade social, ofuscar outros da
mesmíssima dimensão, ou talvez, de melhor quilate, com efeitos iguais ou
maiores.
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*O livro de Adelino Timóteo “Os últimos
dias de Uria Simango” na sua pagina 68, no rodapé, destaca Macombe e Barué como
fortes baluartes da luta contra os portugueses, e faz referência que o
Isaacman, no seu livro, “Moçambique: ensaios”,considera a Revolta de Barué como
sendo uma das percursoras da luta de libertação nacional.