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Sexta-feira
a noite, sentados no sofá, acariando-se mutuamente, os ânimos da libido
incomumente acelerados, quando de permeio, a Viagem abstrai-se de tudo, num
vago movimento contínuo, absorta, continua acariciando o Umbila, seu esposo, que neste
entretanto nota a ausência da esposa, por tão impessoal que se torna o afagar.
Porém, deixa, e ela prossegue com os seus movimentos autómatos, por um largo
tempo, até que cansado dessa ausência, o marido irrita-se, e chama-a para a
realidade. Viagem, onde estás?, num
sobressalto, como que queimada, ela retira a mão que acarciava pela força da inércia.
Sabes, desculpa-se, estava aqui cismada com alguns ingredientes
em falta e que tinha que comprar, por causa do almoço de domingo, sorri, entreabrindo
uma nesga nos lábios, deixando os seus dentes alvos se mostrarem ligeiramente, pretendo fazer bacalhau à lagareiro, e não
tenho suficiente azeite de oliveira, nem tenho na garrafeirra, vinho verde, sei
que gostas com bacalhau. Este desculpar é feito com aquele olhar matreiro, que
derrete, e derreteria qualquer esposo. O
efeito é de tal magnitude, que o Umbila corresponde à medida do efeito. Mor, podes levar o meu cartão e fazes as
compras, diz o moço, não querendo perder a oportunidade de se refastelar
com o apetecido pitéu, num opíparo repasto dominical. Não há que adiar por uns
míseros meticais, pensa, e acrescenta seguidamente, Vê aí na minha pasta. E a Viagem, não se faz de rogada, antes que a
porca torça o rabo e a oportunidade, ainda que por um instante, largo, de ficar
com um cartão de crédito, com limite ao gosto, se vá para o ralo. A madame faz-se
a pasta, numa busca desenfreada, e como sempre, quando a avidez é grande, acaba
toldando a vista de tal maneira, que nem as coisas debaixo do nariz conseguimos
vê-las. O mesmo está sucedendo a nossa amiga Viagem, que vai e volta aos
diversos compartimentos, solicitando simultaneamente a suposta localização do famoso
cartão. Tão inglória é a busca, que decide pelo óbvio, vazar a pasta virando-a
de avesso por cima da mesa. No espólio, para além do cartão avidamente
desejado, ressalta no mesmo um comprimido, com ar de antibiótico, de uma coloração
castanha, que intriga a nossa madame, e como mulher que é, trata de questionar
ao esposo, a natureza e destino do comprimido, já porque os antibióticos, na
posse clandestina de algum conjuge, é logo motivo de suspeita. Umbila, que comprimido é este aqui, que
parece um antibiótico?, o enterpelado olha, sofre um sobressalto, que com
um esforço titânico, tenta camuflar, e para não dar nas vistas gaguejando a
procura do nome a inventar, investe na meia verdade, Esse comprimido chama-se Furumbao, foi o médico que me receitou por
causa da minha diabete, diz, e a madame intrigada pelo nome e coloração, questiona,
Furo quê?, Furumbao, repete o Umbila, são
uns comprimidos novos, que o meu médico deu-me como amostra, para comprar e
passar a tomar um por dia, logo pela manhã, mas eu acabei esquecendo,
respirou fundo e acrescentou com o objectivo de conferir maior veracidade, ele diz que são muito bons. Tu sempre o mesmo, na vez de cuidares da
tua saude, esqueces-te, diz a Viagem, com o seu ar maternal. Pegando numa
folha e caneta, tirada da pasta do esposo, depois de arrumá-la convenientemente,
com o jeito que só as madames têm, dirigi-se ao mesmo e diz-lhe, Escreve aqui o nome desse medicamento, que
vou eu mesma a farmácia comprá-lo, se esperar por ti nunca mais acontece. O
Umbila ainda tentou balbuciar uma contraposição, mas olhando para a mulher, viu
aquele sinal, bem seu conhecido, de determinação, que é o sobrolho arqueado, e
não resistiu, e como uma criança, assentou o nome na folha, e suspirou, mais ou
menos querendo significar: seja o que Deus quiser.
Sábado de
manhã, afazeres de rotina, da casa e do esposo e filhos, e de seguida a Viagem
sai para as compras aprazadas, com um sorriso nos lábios, já que portadora
daquela coisinha, que põe toda esposa sorridente e bem disposta. Vai a
mercearia, vai ao bottle store, e de seguida vai ao cabelereiro, onde tem a
hora marcada, e ainda tem tempo de passar pela boutique, o cartão permite esses
luxos; e não é sempre que tem a oportunidade de usufrutá-lo. Ja no fim de tudo,
conforme o traçado, dirigi-se a farmácia, com o fito exclusivo de comprar o
medicamento para o esposo. Confirma se o rabisco se encontra na carteira; esse
nome esdrúxulo, não lembra nem ao diabo. Furumbao! Entra na farmácia, onde uma
quantidade razoável de clientes era atendida. Sorriso nos lábios, faz um
compasso de espera, até que uma das balconistas se liberta, dirigi-se a ela,
mantendo o sorriso, solicita, Por favor,
poderia arranjar-me estes comprimidos,
acto contínuo retira o rabisco e lê em
voz alta, Furumbao, para o meu marido,
para o controlo da sua diabete. Sente no ar algo que a encomoda, vindo de
alguns clientes mais próximos, risos contidos carregados de gozo, e um evidente
sorriso indulgente da farmacêutica. Ao que ela, um tanto surpresa, indaga se
havia dito algum disparate. A farmacêutica vendo a cara de surpresa, entendeu,
pelos ossos do ofício, que havia ali algum equívoco, optando, como em todos
casos que tais, numa explicação em surdina. Foi-lhe dizendo que os comprimidos
não eram para combate nem controlo das diabetes, mas sim para resolver
problemas de disfunção eretil. Ao que a Viagem passou de surpresa a indignação
e desta a uma raiva enlouquecedora, Eu
mato esse gajo, foi a única coisa que conseguiu dizer, de tão alto que
falou, todo mundo a olhou. Tomando consciência, do incauto, ficou com um rubor
de constrangimento e uma vontade de se enterrar. Saiu dali direitinha para casa,
entrou, espumando pelos olhos, procurando o Umbila. Quando o viu, contou até
três, e disse-lhe: Meu caro amigo,
comprei os teus comprimidos para diabete, mas na vez de tomá-los de manhã e
fora de casa, pelo menos compensa-me o vexame que passei, faz-me o favor de tomá-los,
a noite na mansidão do teu lar, que já estou cansada de ter vela derretida por
cá na hora da verdade.