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sábado, 1 de março de 2014

As nossas descaradas renegações


por Lo-Chi

Na senda das histórias ligadas aos nossos médicos primeiros, no sentido de naturalizá-los, aqui estou. Poucos são os que assumem a realidade incontornável de mais dias menos dias, termos, por razões diversas, de ir aos nossos curandeiros. Nas sociedades africanas actuais, como resultando do nosso processo histórico e na sequência do complexo que adquirimos, através do efeito colonial, tudo que é nosso, é baixo, é inferior, é buçal, está fora do conceito civilização. A tendência é de renegar a nossa vivência, a nossa espiritualidade primeira. Cumprimos os nossos ritos, sempre com uma espécie de vergonha e clandestinidade. Ainda temos vergonha da nossa nudez. A nossa descolonização mental ainda está longe de acontecer completamente.

Estando em Nampula trabalhando, acabei reencontrando-me com um amigo de infância, o Giovane Casuarina, que segundo o seu destino, acabou fazendo medicina, estando na altura estagiando, bastante adiantado, para a especialidade de cirurgia. Recordo-me, que umas das vezes, ele foi-se aos arames, porque um médico tradicional foi ter com ele e chamou-o de colega. E ele, com toda propriedade, foi argumentando que era um autêntico atrevimento, o sujeito ter reclamado paridade profissional; ele que investira anos à fio nos seus estudos, suportando professores e toda a sorte de privações e sacrifícios, para ser homonimado por alguém, que nem na escola secundária estivera, e nem tinha a mesma competência. A verdade porém, é que as agruras do destino, levaram-no a uma situação complicada, com sinais de desespero: cai doente. Doença que se prolonga, interditando-o de fazer suas operações. Fez todo o tipo de consultas, análises e testes. Irremediavelmente, estava parqueado nas boxes, avariado: avaria grossa. Os remédios não lhe faziam o devido efeito. Conclusão, já todos nós sabemos: ir ao curandeiro. Depois de alguma resistência, que não era resistência, mas uma simulação de coerência, acabou no óbvio. Acedeu, ou, verdade seja dita, suplicou. O perito foi chamado à casa. Coincide com uma das minhas visitas. Quando entro, como era comum, com o à vontade da nossa longa amizade, vou-me fazendo, sem permissão especial, mas diferentemente, sinto no ar um embaraço, uma autêntica súplica de indefinível, mas o inevitável deu-se. Quando chego ao quarto, dou de caras com o especialista, que estava dando as recomendações finais ao seu paciente, que com ar confrangedor, (do jeito de alguém que é apanhado a limpar o salão com o indicador) quanto submisso, ia assimilando atento a prescrição, com as raízes denunciadoras, como arma do crime, na mão. Verdadeiramente com a boca na botija. E que botija. Quando aquele sai, para conferir naturalidade a situação, mas piorando o embaraço, sem querer,  perguntei desastrado: o quê que o teu colega prescreveu-te? Essa doeu-lhe, tanto quanto acertarmos com a canela na aresta da cama.

Não há uma sem duas. Sendo, há outra, de um sujeito, de nome próprio Inhassunge Fardado, ocupando um alto cargo no governo central, e como tal, sempre solicitado por inerência de funções, para cocktails, jantares e afins. E como era de bom tom e mandam as regras protocolares, sempre no seu fato. Nesse dia, de forte calor e uma estranha humidade, estavam num jantar, que se prolongou após a saída do boss máximo, no à vontade, e pelo aperto do calor atmosférico, acrescido com o calor do álcool já consumido, todo mundo foi tirando o casaco. E no embalo, o nosso dirigente, esquecido do seu particular, que não era tão particular assim, segue o exemplo dos demais e desmonta o seu. Qual é o espanto? – que não era, e nem deveria ser espanto. No seu braço direito, tinha uma braçadeira vermelha com um txitdjumbo(*) preto. E ele só dá por ela, num momento irreversível, quando todo o mundo, uns estupefactos e outros curiosos, olhavam para a sua braçadeira de capitão. Alguém, muito próximo e sarcástico, perguntou-lhe em que equipa jogava, e ele todo pálido, vermelho não podia, era preto e preto não fica vermelho, sem jeito, titubeia com péssima dicção, (com o mal-estar de quem é apanhado a roubar em flagrante) que era um problema de uma dor muscular que o sujeitava à tão incomoda braçadeira. Mas com txidjumbo? Dava para perguntar. Mas o sentido de conivência, pôs os que sabiam, num desconcertante silêncio. Silêncio mais embaraçante que a pergunta abortada.


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(*)Txidjumbo, amuleto que os curandeiros dão ao desafortunado, de modo a defendê-lo de todo mau olhando, bem como conferir-lhe sorte, no trabalho, nas mulheres, na saúde, etc., etc..

 .fotos do google




A razoabilidade racional


por Lo-Chi


Recordo-me, com um sorriso nos lábios, que, quando ouvi um presidente de uma associação dos médicos tradicionais perguntar, quem, moçambicano, se não mesmo africano, não teria um onze no peito, corroborei. Com toda razão e propriedade, posto que, desde presidente a servente, marcado culturalmente, ainda que de formação superior, vai ao curandeiro ou feiticeiro, conforme o caso de desespero ou hábito enraizado. Pura e indiscutível verdade. Todos nós, no mínimo, umas duas vezes fomos na vida.

Eu já fui ao vovô, quando a vida me correu menos bem, após insistência da mãezinha perguntando se perdia alguma coisa com isso, e na sequência, adoptei o princípio de perdido por cem, perdido por mil e lá fui. Indo, não perdi o senso crítico, não me deixei levar pelos absurdos, apesar de seguir os rituais definidos para o caso. Também já levei o meu filho, quando após todas a tentativas de tratamento de uma maleita que o importunava, redundaram em fracasso, e aconselharam-me a medicina tradicional. Confesso que fui, neste caso, em desespero de causa.

Em conversa com os amigos, tenho recolhido histórias diversas, umas tentando pôr a nu algumas incongruências, senão mesmo, situações completamente caricatas e absurdas, e outras mostrando a funcionalidade  dos curandeiros, com factos irrefutáveis e comprovados de desembrulhanços quase impossíveis, conseguidos com a nossa magia negra. E nesse inventário de factos e provas, vai-se desenrolando províncias mais destacadas, em termos de conhecimentos e peritos desta arte ou ciência. Fala-se de Nampula, fala-se de Niassa, mostra-se que em Cabo Delegado não se brinca, outros da Zambézia, não poucos destacam Tete, e outros tantos, Inhambane, como também Manica e Sofala, e ainda de Maputo e Gaza como capitaneando; em resumo, todo país tem mestres e gurus. Outrossim, em cada província,  vai-se destacando um ou outro distrito, cuja universidade tem tido como resultado, peritos de fama e performance sem igual. Por exemplo, Sofala tem como centro de reabilitação de prestigio e infalibilidade impar, Gorongosa. E assim por diante, para outras províncias.

Uma destas vezes, numa roda de amigos, versando esse tema, um deles dizia, que todos eram uma cambada de charlatães, e que não se devia ir nessa música. E tentando ilustrar, traz como exemplo, uma história que se havia passado com ele, onde um curandeiro depois de todo o ritual de ossos, missangas e conchas, na tentativa de descobrir a causa dos seus problemas, foi chamando os antepassados e todo um rol de forças, que lhe davam a sabedoria necessária, não só para detectar a causa e os motivos, bem como o antídoto para o mal. Diagnosticado; o seu mal tinha origem a sua mãe, cujo motivo era o seu descontentamento, ja porque ela queria uma capulana. E dizia o meu amigo, que era uma estrondosa mentira, posto que ela já estava morta e enterrada, havia mais de seis anos. Todavia, encontrou a justificação para o facto, um outro interlocutor na altura, socorrendo-se do facto de que, se até na medicina científica, havia ginecologistas mecânicos, o que não invalidava a ciência e o saber dos verdadeiros, porquê que essa verdade, não serviria para os tradicionais.
 
Mas a minha grande questão, deste obscurantismo de mãos dadas com a ciência, são alguns descalabros, cujos factos aparecem, relatados vezes muitas na imprensa. Curandeiros que acusam mães de feitiçarem os seus filhos e, em consequência, são por estes assassinadas, por esse suposto delito. Será que uma pessoa, em sã consciência, com uma razoabilidade racional, pode pensar, que alguém que o teve nove meses na barriga, com sacrifícios inarráveis, com privações para o criar, que sofreu com ele e por ele, nas incógnitas do período em que adoeceu, e... de repente, quer o seu mal e vai feitiça-lo depois de crescido?! Onde a razoabilidade disso? Convenhamos.