Chove.
Oiço atentamente a música que a chuva produz, quando de encontro ao
pavimento ou as pedras da calçada. E nessa audição recordo o som que essas
gotas de prata produzem, em plena cobertura de zinco ou de colmo. É um lamento
feito de nostalgias, cheias de claves pungentes, lâminas dilacerando o nosso
ser receptivo a essa música, composta de notas dolentes que só elas podem fazer
semelhante sonata, que abreviava as minhas horas de vigília, naquele magnífico
bairro da minha infância.
E nessa infância despreocupada e cheia de alegria infantil, eu e os
amigos, cantávamos, num ritmo sem compasso, uma música que nos enleava.
Cantávamos nos dias de chuva , porque sabíamo-la construtora de piscinas,
feitas em ventres dilacerados da terra, que eram o cadinho desse metal
friamente liquefeito, cujo aprisionamento, proporcionava-nos largas braçadas.
Por isso, debaixo da chuva, cantávamos a presente e a futura alegria. Contudo,
era uma alegria cortada de vincados receios de sermos admoestados pelo banho no
chuveiro das grandes alturas, ou nas futuras e vindouras piscinas.
Chove. Passeamos no carro; deitados na cama; vemos lágrimas torrenciais
deslizando nos vidros das janelas. É um bem-estar inefável, um arrepio, uma
mutação que sentimos nas nossas fibras. Quando a chuva acontece, sentimos uma
sensação de paz e calma, mas há sempre um ínfimo quê que nos deprime, pois que
todo o doce fremer das nossas fibras, vem mesclado de um certo átomo de
melancolia, as vezes até de solidão, mesmo que com alguém ao lado. A chuva
banha sempre, o ambiente duma imponderável tristeza ou de uma nostálgica
alegria. Talvez porque ela transporta-nos às suas origens, os altos céus, e
timbra-nos com aquela leveza própria das alturas, e aquela nostalgia que só o
cinzento em que o céu se encontra banhado é capaz de simbolizar. E a nostalgia
é própria da solidão.
Chove. E com todos esses pensamentos pego em mim e ando debaixo dessas
lágrimas que me dão a fresca ilusão de magnitude e posse. Passeio pelas ruas,
deambulo pela marginal, e como um sonâmbulo, noto que tudo é imobilidade, indo
até a natureza que se mantém estática, apreciando o fenómeno
Só, como um fantasma, vejo a ausência de pessoas, o que me traz nesta
solidão a impressão de que tudo é meu.
A chuva traz conforto, paz e harmonia, mesmo assim melancolia. E nessa
poalha de consternação, continuo sacrílego, violando a imobilidade, deambulando
pelas ruas; e cheio de frémitos arrepios e com eles uma emoção indescritível de
ver correr fiozinhos de água. Paro; e aprecio embebido numa mística atenção, a
queda livre dessas gotas cristalizadas. E enquanto gozo esta sublimação a
pureza que contenho e a nódoa que
continha, perplexo noto na raiz do nariz uma partícula de água…. Chuva ou
lágrima? Uma lágrima não! Não, porque não choro. E convenço-me. Mas porquê
tanta veemência- pergunto-me – em não chorar, se chorar é a liberdade de viver
uma forte emoção.
A chuva é triste! A chuva é triste porque é o choro do céu em
exuberantes lágrimas que trazem a marca dos olhos repletos de mágoas
liquefeitas. Chove, sentimo-nos aliviados porque com o céu, sofremos uma
descarga psíquica das cargas emotivas que contemos num púdico preconceito de
que o homem não chora.
Chove. Sentimo-nos comedidamente expansivos, porque choramos e as nossas
“lágrimas se confudem com os pingos
dessa chuva”