Antes de mais importa recordar, que antecedendo aos carnavais dos
grandes salões ou dos ocorridos em campos gino-desportivos, toda criança tinha
o seu carnaval de bairro, quer fosse o bairro Kansa, o Vila Pita, o Sinacura, o
Brandão, o Moreira, o Torrone, o Sangalivera, ou mesmo o Saguar ou o Mapiesua, em
que os seus putos se juntavam em grupos de malta amiga, mascaravam-se, sem
grandes requintes, e deambulavam pelo bairro cantando e dançando, muitas vezes,
extasiando espectadores transeuntes, de tal jeito que, acabavam dando uns
trocos aos petizes de então. Podemos situar essa actividade até ao princípio da
escolaridade, na altura designada de ciclo preparatório, que seria hoje o
primeiro e segundo anos do ensino secundário, claro com um matulão desocupado,
normalmente descolarizado, como chefe de equipa e guardião do grupo. Lá para os
quinze e dezasseis anos, mais crescedinhos e com o thymos despontando em alta, não nos permitíamos esse despojamento. O
assunto tomava outro rumo: era o carnaval dos adultos. Aliás, convém recordar
que muitos dos adolescentes, começavam a ter autorização do controlo apertado
dos pais, de sair a noite e voltar de madrugada a partir dos carnavais. E aí
começava o lassar do controlo. Nesta senda, não é de admirar que muito dos
pequenos e pequenas viravam meio adultos, perdendo a virgindade nesse periodo
de folia e muita libertinagem.
Dos carnavais, pode-se recordar que se centravam nos clubes, e deles os
mais badalados foram os da Associação Africana, os de Sporting com pouca
expressão, porque estes esquecendo-se de que o carnaval é essencialmente uma
festa popular, tentaram fazer um carnaval de elite que resultou num redundante
fracasso. O carnaval que conseguiu êxito retumbante, quando no momento
completamente popular, foi o Carnaval do Benfica, sem dúvidas.
Pavilhao do Benfica
O clube, neste propósito o Benfica, organizava o Carnaval, solicitando não
apenas a participação popular dos bairros da cidade, bem como das grandes
empresas de renome na província, que davam o suporte financeiro e aproveitavam
a deixa para publicitar o seus produtos, principalmente no chamado corso da
inauguração e do enterro do carnaval, onde nas viaturas expunham os seus
produtos publicitavam as suas actividades. As pessoas organizadas em grupo
suportadas pelas empresas, outras por iniciativas particulares, eram os
chamados grupos foliões, dos quais me recordo o da Padaria Nacional, o da
Manica, o da 2M, o da Companhia da Zambézia, os do Bailinho, os Metralhas, os
Chaves, os dos bairros ja referidos, etc., etc.. A princípio, o Benfica um pouco no sentido de
permitir o envolvimento de todos, mas com pouca mistura, na hora do baile
durante a semana de carnaval, promovia dois bailes em simultâneo, um dentro do
salão de festas do clube - no local onde hoje se encontra o chamado cinema Estudio 222 - e o baile onde a população dos bairros
se divertia à brava no pavilhão gino-desportivo. Os conjuntos chamados a animar,
eram, por um lado os da elite, The Blue Twiters, Os Idavoli à meio termo, e por
outro, salvo omissão, Os Cometas que actuavam no gino-desportivo, aliás este
passou a ser o conjunto-mor e símbolo do som carnavalesco, com o exímio viola
solo Bébé Temporário e o inesquecível baterista Cassamo, que numa daquelas
então crónicas falhas de energia, pôs-nos, sozinho, sambando para cima de 45
minutos, aguentando com o tranco.
Conjunto Armindo Amaral
A animação de fora, era de tal intensidade
que os de dentro não resistiam e vinham para fora. Até que num desses finais, o
Carlos Beirão, que também era vocalista de um dos conjuntos de dentro, chamou a
realidade dos factos aos organizadores em pelo micro-fone, advinhando que o
carnaval unificado teria outra dimensão. Escutado que foi o apelo pelos
organizadores, unificaram; no carnaval do ano seguinte em diante passou a
acontecer exclusivamente no pavilhão. Teve um salto de qualidade e intensidade
emocional inefável; a sua fama saltou as fronteiras da cidade e viajou pelo país,
ganhou outra vertingem. Nos anos subsequentes as romarias de outras cidades
para participação no carnaval da cidade de Quelimane, foi explosiva; passou a
figurar nos assuntos da temporada, com repórteres especiais dos orgãos de
informação a deslocarem para a cidade, para descrever a folia dos zambezianos,
a miscegenação, não apenas de culturas cores e raças, bem como dos diversos
extractos sociais num convívio particularmente interessante, fazendo dessa
festa uma academia de convivência. Quem não se recorda das grandes reportagens
do João de Sousa, da RM, fazendo jus a fama ganha pela festa de marca
quelimanense, como também as reportagens, quer fotográficas, como escritas, da
revista Tempo, altamente conceituada na altura?! E isso, sem falarmos da culinária
única, que era posta nessa montra em que a cidade se transformava. Recordo-me,
por exemplo, do grupo de foliões organizados vindos de Nampula, pertencentes a
casa Guida, salvo erro. Bem como sambistas exímios na arte de mexer o esqueleto
como o famoso Aligy, que com uma simulação pôs um guerilheiro recentemente
chegado das matas, no carnaval imediatamente antes a independência, num
histórico tombo com a sua Kalich nikov
a tiracolo. No último dia de cada carnaval reinava a ansiedade de saber afinal
quem seriam; o rei e a rainha, e qual o grupo mais folião.
Aconteceu a independência, com todas as suas mutações e matizes, mas a
essência carnavalesca da cidade ficou, ainda que em estado latente. Passados os
complexos próprios de um país criança, a festa de carnaval foi retomada com as
devidas e necessárias adaptações, numa nova miscelânea de sons e ritimos, e
passando pelos trajes. Desde o Pio Matos
até ao presente mandato do Mano Mané, o município assumiu a gestão e
organização do carnaval, e é feito na rua, no jeito do sambódromo do Rio de
Janeiro, numa festa eminentemente popular, onde a criatividade e habilidade dos
bairros é posta a prova. Para mim o senão, está decididamente no som, que não
consegue ter a potência requerida, bem como pelo facto de não cobrir todo o
percurso da área de dança, com colunas estrategicamente localizadas. Outro senão, ao que me disseram, já resolvido, isso
porque este ano estive ausente, era o facto de a área dos comes e bebes estar distante
da área da folia. O combustível dos foliões é a bebida e a comida. Parabéns
pelo facto. Mas resolva-se o óbice som e ver-se-à a qualidade daí advinda.
Explodir-se-à de novo, a outros níveis, para o gáudio de todos.